Pedro Abrunhosa: "Eu vivo numa angústia de livros"
Por: Bertrand Livreiros a 2020-02-20 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Recebemo-lo numa tarde chuvosa para uma conversa à volta dos livros*. A livraria, que apelida de "uma espécie de corrente sanguínea", já habituada às suas visitas, encheu para o ouvir falar. Leitor ávido, desde criança, estabelece logo no início o tom da paixão que lhe corre nas veias: "as livrarias representam para mim um certo pulsar de uma alma que não vai desaparecer." E foi essa paixão que nos prendeu, durante pouco mais de uma hora, às histórias partilhadas, ao amor confesso pelos livros, à avassaladora cultura geral que partilha connosco como se estivéssemos em família. Ouvi-lo falar de livros é também uma espécie de música.
* Pedro Abrunhosa foi o convidado da sessão Palavra de Escritor, que decorreu dia 30 de janeiro, na Livraria Bertrand da Rua da Fábrica, no Porto. A conversa foi conduzida pelo jornalista Sérgio Almeida.
Sérgio Almeida (SA): Em que sentido é que achas que, neste mundo cada vez mais desmaterializado, em que as compras online galgam terreno, as livrarias de rua continuam a ter um espaço insubstituível?
Pedro Abrunhosa (PA): Neste panorama cinzento, que se transforma num colorido de fachadas muito giro, as livrarias representam, para mim, um certo pulsar de uma alma que não vai desaparecer - ou que não se pretende que desapareça. Quando uma livraria fecha – e fecharam muitas livrarias de rua – quando uma livraria fecha… Há uns anos, havia a Bertrand da 31 de Janeiro, que se dividia em duas: era a Bertrand de cima e a Bertrand de baixo, e eram espaçadas por 20 metros. (…) A Bertrand era o sítio onde a minha família tinha conta. Quando queríamos um livro, tínhamos carta branca para ir comprar o que quiséssemos, à Bertrand de cima ou à de baixo. E, claro, eu comprava o que queria ler, e a senhora perguntava: “É para pôr na conta?”. “É para debitar?”, dizia ela. E eu não sabia o que é que era debitar, mas sabia que saía sem pagar e dizia sempre que sim. (risos) Claro que aquele debitar significava que a minha mãe depois passava lá e pagava, como é óbvio. Portanto, eu cresci com essa cumplicidade com os livros. Quando uma livraria fecha é assim uma espécie de dor que fica. Eu lembro-me, quando a Bertrand da 31 de Janeiro fechou, foi uma parte do meu passado que se perdeu. Eu vivo numa angústia de livros… estamos aqui rodeados de livros, e se vivêssemos dez vidas, não conseguíamos ler o que aqui está, e isto não é nada do que existe, não é? Portanto, a livraria é uma espécie de corrente sanguínea.
SA: Mas achas que devia haver uma proteção especial para as livrarias de rua?
PA: Acho que a livraria cumpre um papel fundamental de pólo cultural – aliás, estamos aqui perante isso –, de identidade da cidade, de pulsar – da cultura, naturalmente –, de história. (…) Aliás, isso existe, na verdade, para as bocas-de-incêndio; não sei porque é que não há de existir para as livrarias: a cada X quarteirões, uma livraria.
SA: Neste mundo concorrencial e, cada vez mais dado à desmaterialização, qual é que achas que deve ser a mais-valia das livrarias para convencer as pessoas a cá vir? É o atendimento, o lado humano?
PA: As pessoas que aqui estão, conhecem-me… Eu entro, dou uma volta e vou ali àquela estante naquela parede (aponta para a estante) que é de História e Filosofia e depois à de Ciências. E fico ali. Às vezes, é o atendimento; outras, é o espaço em que estás com os livros, podes pegar neles. É diferente de uma biblioteca. Quantas vezes sou seduzido pelo conteúdo só porque leio umas páginas… Não é preciso ler-se um livro todo para perceber se vale a pena. É como perguntarem-me se eu preciso de comer o bolo de chocolate todo para perceber se estava bom. Não é preciso; às vezes basta passar o dedo. E o livro é assim. A literatura, a grande ficção, a grande poesia – não é preciso ler-se tudo, para se perceber se é bom. Portanto, eu não perco muito tempo a decidir.
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SA: Mas só para rematar…
PA: A arte não é para agradar, é para arrebatar, é para te levar para um outro sítio diferente. A arte é um ato profundo de “Eu quero estar noutro lugar”. E, de repente, quando voltas para esta dimensão apetece-te regressar àquela. E é por isso que ler é um ato cíclico e vicioso.
SA: Ao lermos um livro estamos a recusar todos os outros, não é?
PA: Claro! Essa é que é a grande questão. Temos de fazer escolhas e as escolhas têm de ser aconselhadas, nalguns casos. A crítica ajuda a descobrir novos livros, novos caminhos, novos rumos. No caso dos ensaios, por exemplo, isso é fundamental. Nós temos alguns dos filósofos mais interessantes da contemporaneidade. Há um filósofo alemão, Peter Sloterdijk, cuja leitura aconselho: fala sobre antropotécnica e sobre o Homem no centro das coisas, substituído pela técnica… Esses livros são descobertos por aconselhamento. (…)
O aparelho crítico que nós somos, apura-se com a leitura de muitas coisas, é verdade, mas sobretudo através do que lemos na infância e na adolescência… Se perguntares o que é que mais me marcou, dir-te-ei, sem dúvida, que foi o Walter Scott, foi o Daniel Defoe, com A Ilha do Tesouro, com o Robinson Crusoe… portanto, foi literatura infantojuvenil.
SA: Mas foram os teus pais que te conduziram até lá ou deram-te espaço de descoberta? Sempre tiveste muitos livros em casa, os teus pais eram grandes leitores… Mas a chegada até esses livros em concreto como é que se deu?
PA: Esses são óbvios, esses são livros lidos em casa… Os pais, esta coisa da repetição do padrão sociológico. Um filho que vê o pai bater na mulher tem mais probabilidades de ele próprio vir a infligir…porque aquilo é legitimado. A leitura também legitima! Esta repetição do padrão sociológico é difícil de interromper. A violência doméstica é difícil de interromper porque é um dado cultural que se apreende pelo exemplo paternal ou maternal. E, portanto, a leitura também. Para mim ler era um ato banal, normal, de curiosidade, mas o meu pai incentivava e a minha mãe também. E, portanto, os grandes clássicos, esses – As Mil e Uma Noites… Eu acho que ler As Mil e Uma Noites é uma experiência absolutamente fabulosa. Depois, comecei a ler Jorge Amado, muito cedo, com 12 anos. Capitães da Areia foi dos primeiros livros que eu li assim mais consistentes, da literatura mais séria. Fiquei fascinado com Jorge Amado, comecei a ler o Jorge Amado todo e depois passei para o Victor Hugo, que tem uma componente histórica que me fascina e eu tinha um bocado uma obsessão de ler a obra toda, então, li Victor Hugo todo, mas não me arrependo, não me arrependo. O Tolstoi, o Dostoievski, que é um processo… Estou a falar cronologicamente. É um processo muito difícil; Tolstoi assim, eventualmente, mais empático, Doistoievski mais hermético… Esse processo foi todo desenvolvido na adolescência (…) Eu acho que é, de facto, importante que se passe esse instinto, essa vontade, aos nossos filhos, por muito que toda a atmosfera à volta diga o contrário.
SA: Falando ainda dos teus livros da adolescência: algum deles era livro proibido? Foram leituras não vigiadas, escondias dos teus pais por serem livros considerados perniciosos?
PA: Não, na minha casa não havia livros proibidos para nós. E se calhar todos os livros em casa eram proibidos, percebes? Porque eu nasci ainda debaixo do regime salazarista, portanto havia muita coisa que era matéria proibida. A biblioteca estava aberta. Lembro-me uma vez em que o meu pai trouxe uns livros sobre Auschwitz - eu devia ter uns 12 anos - e deixou os livros em cima da mesa de propósito, uns livros super agressivos de fotografias. Aqueles livros eram uma espécie de…atração pelo abismo. E depois o meu pai explicou-nos o que é que tinha sido o Holocausto. Aos 12 anos, ver aquelas imagens de Auschwitz, das crianças a serem levadas para as câmaras de gás… Eu nunca mais esqueci isso, nunca mais esqueci, e depois fui a Auschwitz em 1987. Nunca mais esqueci esse papel de chicote que o livro como objeto pode ter.
"Eu vivo numa angústia de livros… estamos aqui rodeados de livros, e se vivêssemos dez vidas, não conseguíamos ler o que aqui está, e isto não é nada do que existe, não é? Portanto, a livraria é uma espécie de corrente sanguínea."
SA: E provavelmente leste depois também o Primo Levi, Se Isto é um Homem…
PA: Do Primo Levi li, enfim, o que havia disponível na altura. E toda a literatura de guerra e pós-guerra, de alguma forma… Aliás, o próprio Thomas Mann, que é uma figura muito interessante do panorama europeu - se leres Os Budden Brook e a própria Montanha Mágica, percebes que há ali um percurso que tinha de desaguar na Segunda Guerra Mundial. Há uma perspetiva da Segunda Guerra Mundial que se consegue perceber – e da Primeira, claro – da leitura de um grande autor alemão, dali do centro de onde a grande cultura europeia emergiu. Um país de onde vem um Thomas Mann, um país de onde vem um Göethe, um Beethoven, é o país que comete aquela atrocidade.
SA: Falaste agora de Thomas Mann. Achas que a grande literatura consegue não só captar o espírito dos tempos, mas também, talvez, anunciar ou perspetivar, ainda que nas entrelinhas, o que poderá vir? É esse um dos grandes poderes da literatura?
PA: Eu acho que a literatura não aponta caminhos. A arte não é conselheira, não está a dar conselhos…
SA: Toda ela é liberdade, não é?
PA: Mas é premonitória de alguma forma, porque é sempre visionária; a arte é sempre visionária. (…) Existe uma certa premonição na obra de arte, que pode, de alguma maneira, indiciar o lugar estético onde se estará (…) É um caminho de reencontro e de pacificação e de esperança; e se nós não encontramos esperança na arte não sei onde é que a poderemos encontrar.
SA: Voltemos à tua adolescência, Pedro. Já na altura eras grande leitor. Como é que o leitor livre que tu eras reagiu à obrigatoriedade de ler determinados livros, sob uma perspetiva não do encantamento mas de dissecar, quase, os livros? Isso foi custoso? Lembras-te desses tempos?
PA: Eu acho que a experiência será diferente para cada um de nós. Todos nós fomos obrigados a ler Os Lusíadas. Depende do professor que tivemos, essa é que é a grande questão. Não tive professores que tivessem propriamente ajudado muito a manter o mistério da coisa. Mas tive uma professora que me abriu as portas da grande literatura e me ensinou a ler de outra maneira, eu percebi não a contar os versos… Por acaso, ainda ontem, curiosamente, estive com uma edição fac-similada d’Os Lusíadas e abri… Abrir Os Lusíadas e tentar ler o que lá está impresso é uma experiência fantástica! A leitura d’Os Lusíadas tem um ritmo que não acaba de verso para verso, e é brutal toda a lírica do Camões, a estrutura, as sextinas… É lindíssimo, mas é preciso que os professores nos ensinem também a ver o lado misterioso da coisa, o lado artístico, o lado emocional, não o lado técnico. E o problema do ensino, creio eu, pelo menos de alguns professoras ou de algumas formas de ensino, é percebermos o romance. Por exemplo, no caso do Eça de Queiroz, Os Maias: Cria urticária nas pessoas. E eu pergunto-me porquê. Mas também todos sabemos a resposta: porque nas perguntas que são feitas, sobre o Eça, é preciso lê-lo de um ponto de vista quase técnico.
SA: Mas há algum autor que tenhas dado na escola a que só tenhas voltado anos mais tarde, quiçá, traumatizado?
PA: O Camões é um exemplo. Eu vou ser muito sincero: eu descobri o Camões a sério depois de descobrir o Shakespeare. Porque existe uma lacuna na dramaturgia portuguesa, o teatro português tem uma lacuna. Nós temos uma dramaturgia pobre. O que também explica uma pobre dramaturgia no cinema: os diálogos são fracos porque não há uma prática da dramaturgia. Há uma dramaturgia seminal com o Gil Vicente, depois há assim uns epifenómenos, há o Almeida Garrett, com o famoso Frei Luís de Sousa, a que provavelmente nenhum de nós consegue voltar sem vencer o trauma…
SA: Mas achas que a dramaturgia está a mudar nas últimas décadas?
PA: Acho que sim. Esta ausência de dramaturgia leva a que grandes produções televisivas tenham revelado o Shakespeare. Uma coisa é uma encenação e outra coisa é uma transposição para o ecrã. Eu descobri Shakespeare via fonética. Porque ouvir Shakespeare, ouvir a declamação dos autores da Royal Shakesperean Company, pode ser Romeu e Julieta, pode ser A Tempestade, pode ser Ricardo III… A cacofonia, as aliterações, a melodia das palavras… "When to the sweet sessions of silent thought / I summon up remembrance of things past, / I sigh the lack of many things thought, / And with old woes new wail my dear time’s waste”. Ouves isto e pensas: isto é um soneto. Quem é que em Portugal escrevia assim nesta altura? Camões. E vais ler Camões e tens um deslumbramento. Portanto, descobri Camões aos 30 anos, deslumbrado com a fonética, com a aliteração… É a mesma coisa que Shakespeare fazia e, às vezes, até melhor. Melhor porque é português! Estás a perceber?
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SA: Ao contrário do teatro, a poesia tem fortíssimas tradições em Portugal, através de séculos. Acho que era o Eugénio que dizia que é na poesia que se manifesta a mais elevada expressão do génio literário português. Corroboras?
PA: Absolutamente. Acho que a poesia e a ficção, também. O Memorial do Convento é um livro que põe Portugal no século XXI! Existe um antes e um depois d’O Memorial do Convento. O Memorial do Convento lança Portugal no século XXI, do ponto de vista estético. O século XX português acaba com O Memorial do Convento. Aliás, ele nem sequer começa em 1900, ele começa ali, grosso modo, a seguir, em 1916. O surrealismo é tardio e, depois, O Memorial do Convento, do ponto de vista estético, anuncia o novo ano, o novo milénio, até. Como é que existem miúdos do liceu com O Memorial do Convento em resumos? E é aquilo que eles estudam! Eu não sei o que é que se pergunta! Também nunca tive curiosidade de pegar num resumo e de perceber o que é que se pergunta d’O Memorial do Convento ou d’Os Maias. Quando os miúdos têm um resumo assim é porque se perguntam coisas muito específicas. Mas onde é que está a magia e a emocionalidade daquele abraço, daquela relação entre Baltazar e Blimunda, daquela passarola, que voa. Sinceramente, eu quando cheguei ao fim d’O Memorial, até a meio d’O Memorial do Convento, eu estava a dizer: será que a passarola voa mesmo? É a grande literatura fantástica, é a grande literatura sul-americana, é o Cortázar, o García Márquez, onde o tempo não é tempo, onde as pessoas têm 300 anos… E tu lês aquilo e achas que é legítimo! E é isto, a literatura é isto. A poesia, em Portugal, é uma das grandes tradições que vêm do grande trovadorismo, que é alicerçado na música e numa cultura clássica, digamos assim, porque a poesia, ela própria deriva de uma elasticidade, se quiseres, de uma grande tradição helénica, romano-helénica. E, portanto, sempre houve na zona Sul da Europa – Itália, Provença, França, Sul de Espanha e Portugal – uma grande tradição da poesia lírica trovadoresca muito popular. E com grande sucesso europeu. (…)
SA: Mas achas que o século XX foi o século de ouro da poesia portuguesa?
PA: Aliás, há um livro que é O Século de Ouro da Poesia Portuguesa…
Existe uma certa premonição na obra de arte, que pode, de alguma maneira, indiciar o lugar estético onde se estará (…) É um caminho de reencontro e de pacificação e de esperança; e se nós não encontramos esperança na arte não sei onde é que a poderemos encontrar.
SA: Mas também não é a proximidade que nos faz…?
PA: Claro! É um achatamento cultural. Há uma evolução histórica da poesia em Portugal que é alicerçada e fundamentada… Ela própria assenta no seu passado. Só se explica o poema que está presente nessa coletânea - que é Em Creta, com o Minotauro, sabes qual é? -, do Jorge de Sena, com a grande tradição. É isso que falta na dramaturgia portuguesa, é exatamente isso – e que a ficção também tem… os grandes romances axiomáticos, para mim, do século XX, são O Memorial do Convento, O Esplendor de Portugal, de Lobo Antunes, o Mau Tempo no Canal, do Nemésio e o Sinais de Fogo. Há muitos outros, há sempre uma injustiça em excluir… Mas na poesia é mais difícil… O Daniel Faria, a Maria do Rosário Pedreira, o Jorge de Sousa Braga. Há uma geração que exporta a palavra de uma forma absolutamente… Aquilo que eu encontro na poesia é, como dizia o Óscar Lopes sobre o Eugénio de Andrade, "uma espécie de música". Mas não há nada que seja mais volátil do que a poesia, porque a poesia é, como a música, uma coisa diferente para cada um de nós. É uma sensação! A poesia não se traduz.
SA: Mas tu gostas de descobrir autores? Tens essa febre da novidade, de descobrir autores? Na poesia e não só…
PA: Estou numa fase de muito ensaio. Mas os autores, aqueles que a poesia me traz, são aqueles que eu vejo nas estantes e de que gosto e que levo; não preciso da sanção de ninguém. Por isso é que esta coisa de ter os livros aqui é fundamental para cada um de nós construir o seu próprio espólio interior. Quando se discute poesia ou ficção, ou seja o que for, já se está num nível tal de evolução humana que não estamos a discutir as questões do Instagram, estás a perceber? Quem me dera que o Instagram discutisse poesia, era maravilhoso! “Olha, eu li Ezra Pound!”, “Ah, eu prefiro Walt Whitman.” (risos).
SA: Mas curiosamente as redes sociais têm contribuído muito para a dinamização de excertos de poesia.
PA: Têm. Eu estou a brincar, há fantásticos pequenos… Não sei como se chama, sites de Instagram…de poesia, que vale a pena seguir. E às vezes é através deles que eu descubro. Mas as redes sociais também podem fazer isso.
SA: É curioso isso que disseste acerca dos ensaios, porque acho que é uma tendência. Há uma grande subida na venda dos ensaios, e curiosamente a ficção tem decaído, não só em Portugal mas no mundo. E uma das teorias, dos editores com quem eu falei, é que as pessoas têm vindo a substituir a necessidade de ficção pelas séries, pela Netflix. Achas que o nosso gosto pelas histórias estará em risco?
PA: Pode ser uma resposta, digamos, sociológica, que pode ser plausível e pertinente. No meu caso, eu procuro alguma explicação para o momento conturbado… Nós estamos no olho do furacão de um grande movimento que é forçosamente um movimento político; é uma revolução industrial; porque ela mexe com mobilidade, mexe com os meios energéticos, mexe com os produtos culturais. É isso que define uma revolução industrial. Estas transformações tecnológicas implicam sempre transformações humanas, políticas, sociais, etc. Nós estamos no olho do furacão dessa mudança.
SA: Mas achas que nunca houve tantas transformações num tão curto espaço de tempo…?
PA: Mais uma vez, é uma forma achatada de ver o tempo. Porque a história tem essa tendência, de desatarmos a exacerbar e dizermos que nunca aconteceu. O que nunca aconteceu foi uma transformação, ao nível da passagem da informação, tão rápida. No caso, por exemplo, dos Descobrimentos … quem somos nós para dizer que estamos a mudar o mundo de uma forma mais avassaladora do que mudou todo o período quinhentista, e depois seiscentista, etc.? Não sei se nós podemos dizer e simplificar as coisas assim. Mas o que é certo é que esta revolução digital, que transporta tudo para o imediato, tem pelo menos essa característica nefasta, da recompensa do imediato. As pessoas procuram a recompensa do imediato!
SA: E está a mudar a nossa perceção das coisas. Em que sentido é que achas que essa sensação de emergência, cheia de alertas noticiosos e notificações, está a invadir o espaço que também é o do recolhimento, da leitura?
PA: A questão é que nas redes sociais nós estamos vivemos a frivolidade do momento, a recompensa do momento. Nós somos turistas nas vidas dos outros. (…) Essa ausência de empatia com a experiência leva a que também a tragédia dos outros não seja uma coisa empática. Porque é uma coisa imediata e até sou capaz de pôr lá um like por empatia. É a não vivência das coisas. Isso que estás a dizer do tempo interior é o tempo interior para tudo! Para a família, para estar a ver um quadro, para si, para parar, para ler, para contemplar.
Opinião dos leitores