Vergílio Ferreira | Uma poética da condição humana
Por: Beatriz Sertório a 2022-01-28 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Como ensaísta, é incontornável; como romancista, há quem diga que não deixou herdeiros. Apesar de volvidos 25 anos desde a morte de Vergílio Ferreira, o autor natural de Melo (Gouveia), que comemoraria hoje o seu aniversário, continua a ser um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa. Deixou-nos como herança uma obra literária extensa: é autor de 25 romances, 13 ensaios, e ainda 12 diários. Em 1992, foi galardoado com o Prémio Camões - prémio que foi atribuído três anos depois ao Nobel da Literatura, José Saramago. Por sua vez, em 1997, foi instituído o Prémio Literário Vergílio Ferreira, atribuído anualmente pela Universidade de Évora, cidade onde Vergílio viveu e lecionou antes de se fixar permanentemente em Lisboa.
Tendo dedicado o resto da sua carreira ao ensino no liceu de Camões, foi, para além de professor, um mestre - do pensamento, do neorrealismo, do existencialismo e das palavras. Morreu no dia 1 de março de 1996, na sua casa, em Lisboa, tendo sido cumprido o seu último desejo - que o caixão onde foi enterrado, na sua terra-natal, ficasse virado para a Serra da Estrela.
“Dar a volta por quanto existi – e exististe tanto. Porque uma vida humana. Como ela é intensa. Porque o que nela acontece não é o que nela acontece mas a quantidade de nós que acontece nesse acontecer.”
Uma biblioteca a duas velocidades
Ao "mestre sem discípulos", como por vezes o descrevem, são atribuídos, no entanto, muitos mestres. Costumava dizer que foi Eça de Queiroz quem o ensinou a escrever e André Malraux quem o ensinou a pensar. Esta admiração por um dos mais importantes romancistas do realismo português e, ao mesmo tempo, pelo autor do romance existencialista A Condição Humana estão, aliás, na base da criação do seu estilo singular. Embora tenha enveredado, em primeiro lugar, pelo neorrealismo, a sua obra acabou por ser influenciada pelo existencialismo que, desde os anos 40, se havia manifestado em autores de excelência, como Jean-Paul Sartre e Fiódor Dostoiévski. Para além destes, era também admirador confesso de Clarice Lispector, e de filósofos como Karl Jaspers ou Martin Heidegger, gabando-se até de ter lido "tudo quanto valia a pena" da filosofia ocidental.
O seu primeiro romance assumidamente existencialista é Manhã Submersa, publicado em 1954, e adaptado para o cinema, com título homónimo, em 1980. No entanto, é, possivelmente, em Aparição, publicado em 1959 e igualmente adaptado para o cinema em 2018, que esta tendência se manifesta mais evidentemente. Em 1983, publica aquela que é considerada a sua obra-prima, Para sempre, a quem Eduardo Lourenço elogiava o "expressionismo realista" com "requintes beckettianos".
Vergílio Ferreira no Liceu de Camões.
As palavras como pedras
“E, todavia como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir com palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras.” Apesar desta consciência das limitações das palavras, expressa no romance Aparição, Vergílio Ferreira construiu uma linguagem própria que, oscilando entre o pensamento filosófico e a poesia, criou um lugar único para o autor no panorama da literatura portuguesa. Segundo o autor, o que ele escrevia não eram meros romances, mas sim "romances de ideias", justificando assim a dimensão simultaneamente poética e reflexiva das suas obras.
Por esta linguagem tão característica e, apesar de ter inspirado vários autores (alguns que ele próprio apadrinhou, como Lídia Jorge ou Almeida Faria), é comum falar-se na obra de Vergílio Ferreira como única na literatura portuguesa - órfã, por encontrar os seus antecedentes apenas em autores estrangeiros; e sem herdeiros, por não existirem autores portugueses a continuar o seu caminho. A única possível exceção, consideram alguns críticos, possa talvez ser Gonçalo M. Tavares, vencedor do Prémio Vergílio Ferreira em 2018, cujos romances o ensaísta Luís Mourão define como "romances-reflexão." Contudo, apesar do respeito assumido por Vergílio, M. Tavares não o reconhece como influência direta nas suas obras, às quais, na opinião dos mesmos críticos, falta algum do "pathos (lírico, metafísico e irónico que definiu o modo vergiliano."
“Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.”
Um homem contra o sistema
Sobre o homem que foi Vergílio Ferreira, afirmou o poeta e tradutor João Moita: "Foi um homem sempre contra o sistema: viveu mal com o antigo regime, com os neo-realistas e com o comunismo, com o regabofe revolucionário, com as perversidades do capitalismo". Apesar dos seus mais de 50 anos de vida literária e do reconhecimento pela crítica, a opinião em relação à obra e à personalidade de Vergílio nunca foi consensual, algo que prejudicou o seu legado enquanto escritor bem-amado pelos portugueses. Em parte, por culpa sua, pois a sua personalidade tremendamente contestatária, fazia dele um crítico feroz dos seus pares, algo que deu azo a múltiplas desavenças. Eduardo Lourenço considerava-o "um radical" e, por sua vez, António Lobo Antunes apelidou-o, ironicamente, de "Sartre de Fontanelas". Para além disso, não era homem de fugir a polémicas, não hesitando em partilhar as suas opiniões mais controversas. Entre essas, contam-se as suas críticas a Fernando Pessoa, cuja obra considerava sobrevalorizada, ou as críticas ferozes ao comunismo, que criaram conflitos entre si e personalidades como o poeta Herberto Helder - sobre quem escreveu que tinha deixado crescer as barbas para ficar parecido com os militantes do PCP -, ou o autor e crítico literário Eduardo Prado Coelho - com quem ficou furioso por este se ter alistado no Partido Comunista.
Contudo, os seus alunos e jovens autores que admiravam a sua obra e tiveram oportunidade de o conhecer, falam de um homem tão contestatário como sensível; professor e mestre preocupado que apadrinhou e impulsionou a carreira de autores como Almeida Faria, Vasco Graça Moura e Teolinda Gersão. Sobre a atitude contestatária, mais não seria de esperar de um homem que encontrou uma das suas maiores inspirações num autor que acreditava que "toda a arte é uma revolta". Segundo Malraux, uma revolta "contra o destino do homem". Mas poderia acrescentar Vergílio: contra o sistema, contra a dureza das palavras, contra uma vida apagada, sem "a evidência ácida do milagre do que [somos], de como é infinitamente necessário que [estejamos] vivos, e ver depois, em fulgor, que [temos] de morrer».
“O amor acrescenta-nos com o que amarmos. O ódio diminui-nos. Se amares o universo, serás do tamanho dele. Mas quanto mais o odiares, mais ficas apenas do teu. Porque odeias tanto? Compra uma tabuada. E aprende a fazer contas."