Lá fora, dentro de um livro | 8 livros para viajar sem sair do sítio
Por: Beatriz Sertório a 2020-07-30 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Nos últimos meses, quando o mundo se tornou do tamanho da nossa casa, foram os livros que nos permitiram continuar a viajar. A constatação de Jorge Luís Borges de que “[o] livro é uma extensão da memória e da imaginação” tornou-se ainda mais verdadeira quando todos os lugares que visitámos ou pensámos visitar deixaram de ser acessíveis por outra via para além da memória ou da imaginação. Embora não possamos saber o que o futuro vai trazer, sabemos que podemos sempre contar com os livros para viajar quando a realidade nos confina. Às vezes, a viagem é atribulada e deixa em nós uma tempestade de emoções, outra vezes é como um cruzeiro em dia de sol e céu limpo, que desejávamos que nunca terminasse. Em ambas, a mesma certeza, compartilhada por Fernando Pessoa: “Para viajar, basta existir.”
Viagem a Portugal
José Saramago
Aconselhamo-lo a começar o seu percurso perto de casa. Com Viagem a Portugal, um livro de crónicas publicado por José Saramago em 1981, acompanhamos o Nobel enquanto este percorre o nosso país de lés-a-lés, entre outubro de 1979 e julho de 1980, tecendo comentários em relação àquilo que vê. O ímpeto para a viagem surgiu de um convite feito ao autor pelo Círculo de Leitores, que comemorava o décimo aniversário da sua implantação em Portugal. Na primeira visita do escritor italiano Claudio Magris a Portugal, Saramago ofereceu-lhe um exemplar deste livro, no qual garante a todos os viajantes que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite…”.
Madeira, Portugal
Notas de Inverno sobre Impressões de Verão
Fiódor Dostoiévski
Afastámo-nos um pouco de casa para conhecermos as impressões de um estrangeiro na sua primeira visita ao Ocidente. Esse estrangeiro é Fiódor Dostoiévski, autor de Crime e Castigo, que em 1862, deixou pela primeira vez a sua terra natal, na Rússia, para conhecer países como França, Alemanha e Inglaterra. Foi durante estas viagens que conheceu Paulina Suslova, escritora russa que serviu de modelo para algumas das suas protagonistas, e foi também quando teve início a sua paixão pelo jogo (tema que o autor aborda em O Jogador). Desafiado por amigos a descrever o que observava, escreveu este livro, que reúne observações de viagem, esboços e comentários de teor social e político. Misturando ensaio e ficção — o que veio a ser característico da prosa de Dostoiévski —, Notas de Inverno sobre Impressões de Verão é visto como um precursor de outra obra do autor, Memórias do Subterrâneo, considerada por vários críticos um dos primeiros romances existencialistas.
Viagem a Itália
Johann Wolfgang von Goethe
Desde o século XVIII que Itália é um dos destinos de eleição do turismo mundial. Para Goethe, nascido em 1749, ir a Itália era a suprema aprendizagem para qualquer intelectual, artista ou homem de letras da altura, tendo chegado a comparar a capital italiana com a francesa: “Paris será a minha escola, e Roma a minha universidade. Pois de uma verdadeira universidade se trata: quem a viu, viu tudo.” Por essa razão, em 1786, partiu em segredo e viajou por Verona, Veneza, Lago di Garda, Roma, Nápoles e Sicília, tendo regressado apenas dois anos depois. Encantado com as obras de arte da antiguidade clássica e do Renascimento que por lá viu, começou a dedicar-se ao desenho e escreveu o livro Viagem a Itália, no qual descreve todos os sítios por onde passou.
Siena, Itália
Budapeste
Chico Buarque
Porque a ficção é a maior de todas as viagens, recomendamos-lhe outra paragem: Budapeste, de Chico Buarque. O terceiro romance do autor vencedor do prémio Camões valeu-lhe dois prémios literários e um elogio de José Saramago. Batizado com o nome da capital da Hungria, este livro conta a história de José Costa, um ghost writer altamente requisitado, que trabalha ao serviço da Agência Cultural Cunha & Costa. No regresso de um congresso de escritores anónimos, uma escala inesperada em Budapeste vai alterar o curso da sua vida, deixando o escritor dividido entre duas realidades muito diferentes: por um lado, o Rio de Janeiro, o calor do Brasil e a sua mulher, Vanda; por outro, o frio de Budapeste, uma língua desconhecida e Kriska, a amante. Entre as duas, a viagem e a constante vontade de partir.
Tempo de Dádivas
Patrick Leigh Fermor
O mais recente volume da coleção de Literatura de Viagens da editora Tinta-da-China é um verdadeiro clássico. Com apenas 18 anos, o britânico Patrick Leigh Fermor decidiu ir a pé até Constantinopla – atual Istambul –, a partir de Roterdão, uma pequena cidade holandesa. Transportando apenas um bastão de caminhada, um bloco de notas, uma mochila e dinheiro equivalente a uma libra por cada semana de viagem, Fermor levou dois anos a alcançar o seu destino (de 1933 a 1935). Mais de quarenta anos depois, em 1977, o autor evoca as suas memórias da viagem para escrever este livro, consagrando-se como um dos grandes escritores de viagens do século XX. Tempo de Dádivas é o primeiro volume, cujo relato termina quando este chega à Hungria. O segundo não foi ainda publicado em Portugal, e o terceiro (e último) nunca chegou a ser concluído.
Um Diário Russo
John Steinbeck
Em 1948, em plena Guerra Fria, John Steinbeck e o fotógrafo de guerra Robert Capa decidiram fazer uma viagem pela União Soviética que os levou a Moscovo, Estalinegrado — atual Volgogrado — e aos campos da Ucrânia e do Cáucaso. O seu objetivo era relatar, com honestidade e sem preconceitos, as vidas quotidianas dos homens e das mulheres da Rússia — país que apelidaram de “o grande outro lado”. O resultado foi um retrato único de um país devastado pela guerra, feito por um autor com uma capacidade de observação minuciosa. Juntamente com os estudos fotográficos de Capa, que fazem deste livro uma verdadeira obra-prima do fotojornalismo, Um Diário Russo é, mais do que uma obra literária, um documento de extrema importância para entender um dos acontecimentos históricos mais importantes do século XX.
Moscovo, Rússia
Um Otimista na América
Italo Calvino
Voamos para o lado oposto do conflito armado, documentado por Steinbeck, tendo como guia Italo Calvino, um dos mais importantes autores italianos do século XX. Foi entre novembro de 1959 e maio de 1960 que o autor fez a sua primeira longa viagem aos Estados Unidos da América. Entre outros locais, visitou Cleveland, Detroit, Chicago (que apelidou de “a verdadeira cidade americana, produtiva, material, brutal”), São Francisco, Los Angeles, Montgomery, Nova Orleães, Savannah (para si, “a mais bela cidade dos Estados Unidos”), Houston e, por fim, Nova Iorque, a cidade pela qual se apaixonou e que confessa ter absorvido “como uma planta carnívora absorve uma mosca”. Entre as várias pessoas que conheceu durante a viagem, destaca-se o ativista Martin Luther King, que o autor admirava. É quando regressa a Itália que começa a escrever Um Otimista na América, movido pelo desejo de escrever um livro que fosse “como As Viagens de Gulliver”, pois confessa: “Aventuras, e sobretudo desventuras, certamente não me faltaram”.
Tenho Medo de Partir - Um Livro de Viagens
Fernando Pessoa
Porque “a melhor maneira de viajar é sentir”, partimos para outro tipo de viagem. Neste livro intitulado Tenho Medo de Partir - Um Livro de Viagens, que faz parte da coleção Os Livros de Fernando Pessoa, da editora Guerra & Paz, o leitor é convidado a descobrir a obra de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos a partir de um determinado tema. O tema do volume em questão é a viagem, na sua aceção física ou simbólica, porque, como escreve Manuel S. Fonseca, o organizador desta antologia: “Para que precisa de viajar com o corpo quem tão bem viaja com a alma!”. Os guias são Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, “eternos sonhadores que, à beira do Tejo, veem o rio da sua longínqua aldeia, sonhando com piratas, navios e Chevrolets” (da sinopse). Recordando outro verso de Pessoa, “viajar assim é viagem”.