De Coração — Revista Somos Livros (Natal 2023)
Por: Elísio Borges Maia a 2023-11-10 // Coordenação Editorial: Elísio Borges Maia
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"O primeiro olhar foi uma deceção e até
uma espécie de raiva amarga: aquele
livro roubado, correndo um enorme risco,
guardado com uma expectativa tão ardente
era nada mais nada menos que um livro
de exercícios de xadrez, uma coleção de
partidas de mestres.
Se não estivesse encarcerado, fechado,
tê-lo-ia deitado pela janela fora no momento
inicial de cólera, caso contrário o que deveria
ou poderia eu fazer com este disparate?”
Stefan Zweig, Novela de Xadrez, Assírio & Alvim, 2023
Na primeira conversa que tivemos sobre o tema da revista de Natal aconteceu algo inédito: todos queríamos falar da memória. Não era inteiramente inesperado. A memória esteve presente em muitas edições desta revista. A memória habita mesmo o seu nome — que é também assinatura — Somos Livros. Na polissemia deste nome cabe a imanência dos livros que somos: os que os pais nos leram, os que lemos na escola, os que revelaram o que era omitido na escola, os que formaram a nossa consciência política, os que vieram nos laços da amizade ou pelas veias do amor, os que nos transformaram profundamente.
Cada um de nós tinha as suas razões para falar da memória e isso era o primeiro sinal da ousadia da escolha: falar da perda da memória ou simplesmente da perda; da biologia da memória; da relação entre memória e literatura; do papel da memória no que somos. Era impossível cingir este objeto imenso, mas podíamos conciliar as diferentes propostas. A ausência forçada de um de nós — a quem dedico estas páginas, de coração — não nos demoveu desse propósito.
Trazemos entrevistas a Isabela Figueiredo — vencedora da primeira edição do Prémio Bertrand para Autores Lusófonos, atribuído pelos livreiros Bertrand — e a Shehan Karunatilaka, o autor cingalês que venceu o Booker Prize 2022, e textos maravilhosos de Paulo Gama Mota (A memória), Luís Osório (Se me encontrares dás-me um abraço?), Isabel Rio Novo (Memória, Viagem, Escrita) e Fernando Pinto do Amaral (O enigma de Natália). Deixei para o fim o que poderia estar no princípio — a entrevista a Sara Carinhas. O espetáculo Última Memória — que escreveu, encenou e interpretou — pôs um ponto de exclamação onde permaneciam algumas reticências. Com o medo de esquecer, como ponto de partida, primeiras memórias que trazem algo novo a cada representação e a fotografia como uma bússola que nem sempre indica o Norte, Última Memória é sobre a vida inteira: a memória, a perda, a transformação pelos livros, pelo cruzamento com outros olhares e formas de pensar, o lugar de fala, a tolerância, e, claro, o amor.
As memórias podem ser boas ou más. Inofensivas ou poderosas: um antídoto para o veneno da impunidade, uma vacina contra a repetição da história, que sabemos não totalmente eficaz — a guerra que decorre na Faixa de Gaza também vitimou essa esperança. Podem ainda ser íntimas, pessoais. A arte tem espaço para estas memórias. Última Memória dá-nos a conhecer a avó Nazaré e não foge a essa intimidade. Como By Heart, de Tiago Rodrigues, nos apresentou, uma década antes, a avó Cândida: com 93 anos, Cândida quer dedicar o tempo de visão que lhe resta a decorar um só livro e pede ao seu neto que o escolha. Vacilante, ele escreve a George Steiner, para que este o ajude. Steiner não podia estranhar o pedido — foi ele que disse: “A maior homenagem que uma pessoa pode fazer a um poema ou a um texto que ama é aprendê-lo de cor, by heart ou par coeur. Não by brain, apenas com a cabeça, mas de cor, de coração. Porque a expressão é vital.” Tiago elegeu Os Sonetos de Shakespeare. Cândida gostou: “De cada vez que os leio, encontro uma coisa nova. Os poemas não têm fim. Neste momento da minha vida, prefiro coisas sem fim.”1
É inescapável pensarmos que livro escolheríamos. Parece-me, confesso, uma decisão tão irrealizável que chego a invejar o Dr. B, em Novela de Xadrez, salvo por um livro que não escolheu e começou por repudiar.
Um feliz Natal — que fique na memória.
1. Tiago Rodrigues, By Heart e Outras Peças Curtas, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2.ª edição, 2018.
Artigo publicado na Revista Somos Livros (edição Natal 2023).