Sara Carinhas: "Leio por uma necessidade de sair da minha forma de estar e de pensar"
Por: Elísio Borges Maia a 2023-11-08 // Coordenação Editorial: Elísio Borges Maia
Últimos artigos publicados
“Continuo a acreditar que o amor de que eu falo — que é o da bell hooks, um amor em ação, não um amor só romântico ou romantizado, mas um amor ativo, do dia-a-dia e de todos os gestos — pode ser a salvação.”
Elísio Borges Maia — Vi "Última Memória" em finais de fevereiro. Quando aguardávamos que as portas da Sala Mário Viegas abrissem, pediram-nos que usássemos os papéis e canetas disponíveis num balcão para registar a nossa memória mais antiga — a nossa primeira memória. Pouco depois, surgiste nesse pequeno espaço e deste-nos as boas-vindas. Minutos mais tarde, fomos encaminhados para a sala, por um caminho diferente do habitual, não pela plateia, mas pelo palco. Estavas à nossa espera, segurando uma caixa de madeira, com a tampa aberta, onde foste colocando os nossos papéis. As cadeiras estavam dispostas à volta do palco. O que está por detrás destas decisões?
Quase todas as minhas respostas em relação ao espetáculo, tenho de as acompanhar das pessoas que pensaram o espetáculo comigo. A Sara Barros Leitão, a Nádia Yracema, a Joana Botelho e todo um grupo muito bonito: a Joana Picolo, a Catarina Côdea, no desenho de luz, e a Madalena Palmeirim, no desenho de som. Elas apareceram numa altura chave do processo. Inicialmente, pensei o trabalho sozinha, cheguei a ter uma residência artística em plena pandemia, no Espaço do Tempo [em Montemor-o-Novo]. Foi uma solidão terrível. Senti que já não queria fazer um monólogo, pois não queria estar sozinha. Então, convidei-as para aparecer numa altura em que ainda podia repensar como escrever e o que fazer neste espetáculo. Eu tinha algumas ideias, mas ainda não as tinha cosido. Foi um pouco antes de estar com elas — já com a Joana Botelho — numa outra residência num espaço da Joana Vilaverde, em Aviz, que é muito bonito, quando a Joana Vilaverde me perguntou se eu queria abrir a residência, no fim, às pessoas, que surgiu esta ideia. Foi aí que pensei que o espetáculo poderia ser um pouco interativo. Estava a pôr ideias na parede em post-its — eu preciso de ver o que estou a pensar — e já tinha pedido primeiras memórias a outras pessoas. Foi nessa residência que as pessoas começaram a pôr na parede as suas primeiras memórias. Isso esticou-se, depois, na conversa que tivemos. Procurámos que o espetáculo tivesse mais ar de festa do que de peça de teatro: queríamos que as pessoas sentissem que faziam parte do espetáculo, mesmo sendo um monólogo. Que se sentissem puxadas pelo anzol — o assunto vai ser íntimo, pessoal — e, ao mesmo tempo, quando algumas dessas memórias são usadas a meio do espetáculo, se sentissem parte do espetáculo. Este jogo tinha ainda o objetivo de perceber até onde se universalizam determinadas memórias, como algumas coisas bastante íntimas fazem lembrar histórias de outras pessoas. Onde é que nos podemos encontrar ou desviar dos outros quando partilhamos esse exercício de ir lá para trás, para a infância. A sala ao contrário tinha como objetivo que as pessoas estivessem perto, mas não num sítio convencional — eu no palco e elas na plateia. Era ainda um jogo de memória, de estranhamento: “Eu lembro-me de uma sala que não é assim.”
E nas tuas primeiras memórias, qual sobressai?
Eu — e é mesmo verdade — tenho muito má memória, por isso fiz este espetáculo [risos]. E tenho uma grande incapacidade de pôr as coisas em cronologia. Então tenho dúvidas, mas uma das memórias é de uma caixa — nunca mais vi uma coisa igual —, uma caixa amarela que tinha um buraco no meio e uma tampa. Primeiro, tirava- -se a tampa, punha-se uma pequena folha de papel lá para dentro e cá fora havia várias tintas que se colocavam viradas para baixo. Depois, fechava-se a tampa e uma manivela fazia o papel rodar, as tintas caíam para dentro da caixa e pintavam o papel aleatoriamente, sempre de forma diferente. Eu achava aquilo fascinante, porque saía sempre um desenho diferente. É uma memória muito forte que tenho. Eu, no meu quarto, muito pequenina com a caixa à minha frente. Não garanto que seja a primeira, mas é uma das primeiras.
É isso que procuras no teu percurso artístico, como criadora e intérprete: um desenho diferente todos os dias?
Completamente. Não é fácil trabalhar comigo, porque nunca faço a mesma coisa. Às vezes, é aborrecido, porque há que fixar. Eu, mesmo como intérprete, tenho horror disso. Quer dizer: respeito que tem de haver uma espécie de repetição, as coisas acabam por ter de ser ser minimamente cristalizadas. É quase sempre um trabalho com outras pessoas, não podemos estar sempre a desviar-nos do que combinámos. Há regras. Mas há um sítio do fazer igual, fazer como ontem, que me assusta e é muito fácil cairmos nesse lugar. Acho que a minha profissão não é isso. A minha profissão tem que ver sempre com o dia de hoje, com este momento. E muitas vezes quando estamos à procura que funcione como funcionou ontem, não vai funcionar. Porque o público é diferente, eu estou diferente, a sala está diferente. Não há, na verdade, repetição. Sou assim como intérprete e como encenadora. Quando repomos espetáculos, por exemplo — porque tenho pessoas que confiam em mim, nessa forma de trabalhar —, não tenho medo de os mudar. Vem aquele frio na barriga, que pode ajudar. Não para fazer sofrer os atores, mas simplesmente porque se percebeu, com o tempo, que poderia ficar melhor doutra maneira.
E a encenação presta-se mais a esse desenho sempre diferente?
Não necessariamente. Se calhar, até é mais difícil. São exercícios diferentes. Como intérprete, eu sei até onde é que posso ir com os limites que me deram. Como encenadora, também há o lar gar mão. Chega uma altura em que o espetáculo está a ser feito por muitas pessoas em cena e aí há uma coisa muito bonita, de não controlo, de que eu gosto. Não sou de fazer grandes marcações. Há que deixar o espetáculo ter a sua vida e crescer. Infelizmente, estamos cada vez menos tempo em cena hoje em dia. Por vezes, só perto do fim é que percebemos o que estamos a fazer. É a síndrome desta necessidade de uma programação desenfreada — os teatros transformaram-se em sítios que parecem funcionar ao ritmo dos festivais. É uma pena. Não acontece com todos os espetáculos, há teatros que conseguem manter os espetáculos por mais tempo. Isso faz toda a diferença no que é estar em cena. Mas são a exceção. O desequilíbrio é cada vez maior: temos um tempo de ensaio de três meses e depois estamos em cena duas semanas, quando não menos. Deveria fazer parte do nosso trabalho esse tempo de estar em cena, de descobrir o espetáculo. Ele só começa a existir quando… Quando as pessoas entram com as suas primeiras memórias e as põem na caixinha. Eu não sabia se isso iria funcionar até ao momento de estrear.
Há um sítio do fazer igual, fazer como ontem, que me assusta e é muito fácil cairmos nesse lugar. Acho que a minha profissão não é isso. A minha profissão tem que ver sempre com o dia de hoje, com este momento.
Assumiste a encenação e interpretação de "Última Memória", como já tinha acontecido anteriormente — em Orlando, por exemplo, co-criação com o Victor Hugo Pontes — mas, neste caso, ainda o texto. Como foi o processo de escrita de um espetáculo que já sabias, creio eu, que irias encenar e interpretar?
Sim, eu sabia que estava a escrever para mim e isso faz toda a diferença. Mesmo quando fiz outros espetáculos, por exemplo a adaptação de As Ondas, da Virginia Woolf — um livro dificílimo —, fazia toda a diferença quando eu sabia quem ia dizer o quê. Há uma parte no escrever para eu dizer que é mais… orgânica. Porque falo assim, consigo entender porque é que a frase está escrita assim. Há outra parte que é uma loucura. Passei pelas duas coisas como se não fosse a mesma pessoa. Ou seja, passei pela fase da escrita, que, na verdade, ficou para muito tarde. Tinha muito material avulso, notas de livros e depois tive de tomar decisões. O guião foi escrito e decorado tardiamente. E quando o decorei, não gostei muito da escritora [risos]. Mas que complicação. Quem é que escreveu isto? Não foi por ter sido eu a escrever o texto que o sabia. Foi mesmo necessário decorar cada palavrinha, sendo que abro mão, por vezes, de dizer exatamente o que lá está, brincando também com a memória. Arrisquei [escrever], porque achei que tinha ali uma zona suficientemente pessoal, que também podia ser teatral — um equilíbrio entre duas coisas que eu podia controlar porque era eu que ia dizer. Isso ajudou-me. Foi um desafio e um prazer enorme. A escrita tem aparecido um pouco mais na minha vida, devagarinho.
Elena Ferrante, num ensaio de 2021 intitulado “A pena e a pluma”, partilha as dificuldades que sentiu quando começou a escrever: em primeiro lugar, a escrita levava demasiado tempo a fixar a onda do cérebro, como se fosse uma corrida contra o tempo, na qual quem escreve fica sempre para trás. Depois, sendo quase tudo o que lia escrito por homens (“das páginas vinha voz de homem”), como poderia uma mulher, com coisas para contar, dissolver as margens em que parecia encerrada por natureza? Muitos anos depois desse tempo que ela recorda, as mulheres que escrevem ainda estão a abrir a sua estrada?
Acho que sim. No que se aprende na escola ou na faculdade faltam referências femininas. Ainda é uma luta imensa. Em vários sítios, quando prestamos atenção — por exemplo, quando há listas de escritores, em geral —, as mulheres estão muito sub-representadas. Quanto ao que eu senti quando escrevi… Não por acaso, convidei várias mulheres para estarem comigo, diferentes de mim e com um pensamento também diferente sobre o que é o teatro.
“Eu tenho esperança de ser surpreendida pelo pensamento de outras pessoas, esperança que isso me transforme. Se, por um lado, eu busco o que me sossegue, o que me explique as coisas, eu quero sobretudo não saber o que me vai acontecer. E dentro dos livros há possibilidades maiores do que na vida.”
— Sara Carinhas, Última Memória, 2023
Estás a referir-te às mulheres que pensaram o espetáculo contigo e não às escritoras que te acompanham no texto?
Sim, as pessoas que trabalharam comigo. Mas as escritoras que eu trouxe, ou que fomos trazendo, para o texto eram pessoas a dar-me confiança [risos], uma companhia, vozes que eu podia aliar à minha. Como se fosse um coro. Poderia ter citado outros livros — alguns deles de homens —, mas fui propositadamente à procura de referências entre as mulheres.
Mas sentes aquelas margens quando escreves?
Possivelmente sinto menos, porque sou eu a falar do meu sítio, do meu mundo, do meu privilégio de acesso à cultura, à escola, aos livros. Do meu ponto de vista, posso escrever com liberdade, depois logo se vê se alguém ouve ou lê. Talvez outras margens, que têm que ver com o dia- -a-dia, sejam mais apertadas. Interferências que parecem pequeninas, mas são muito agressivas, diárias, no espaço que podemos ocupar. Na rua, dentro do carro, no nosso discurso, no nosso corpo. Isso pode estar na escrita também, mas escrever é uma ação que pode ter lá dentro uma liberdade muito diferente da de sair de casa, de ir para a rua, de lidar com os corpos dos outros.
No início de “Esta Noite Improvisa-se”, de Pirandello, o Doutor Hickfuss explica que escolheu uma novela de Pirandello por este entender que a obra de um escritor acaba no momento exato em que escreveu a última palavra. E remata: “No teatro, a obra do escritor deixa de existir.” Esta ideia faz algum sentido para ti? E é diferente, quando quem escreve é também quem encena e interpreta?
Acho que essa questão tem mais do que um caminho. Por um lado, é muito engraçado verificarmos que os espetá culos de dança, que não têm palavra, são, muitas vezes, os que circulam mais, têm mais público, têm acesso a muitas cabeças diferentes. São universais, porque a palavra não entra. Não há uma língua, uma linguagem fechada, não é preciso legendas e as ideias parece que ficam maiores. Às vezes, quando pomos as palavras, isso pode ser um problema ou uma coisa incrível, dependendo de como for escrito. Mas as palavras, transpostas para cena, fazem uma escolha do que nós estamos a ver. Encolhem, por assim dizer. O que a encenação pode fazer — e os atores também — é estender. Como diz a Polina [Klimovitskaya], minha professora de teatro, há um lado, que é muito importante, da história que estamos a contar, da época, do que queremos. E há outro em que podemos estar a dizer as páginas amarelas, neste sentido: desde que haja vida isso é que importa primeiro. As palavras vêm a seguir. Não acho, de todo, que isso implique que o autor desapareça ou morra. Estamos a pegar numa história contada por uma pessoa, a dar-lhe vida, por assim dizer, estamos a levá-la para outra dimensão. A pergunta tem várias respostas porque estou a pensar como escritora, mas também como intérprete. E, como intérprete, é muito bonito que eu entenda a história, mas não me deixe levar por preconceitos que um leitor, que não vai interpretar, pode ter. Se a personagem diz “Eu sou tão feia”, se calhar, quando lemos, acreditamos que aquela personagem é triste, se acha feia. Mas eu posso pegar naquela frase e dizê-la a rir ou com ironia. Isto para dizer que o texto vive — o autor está lá —, mas o jogo que se pode fazer em cena com ele é maior do que a primeira proposta que existe quando se lê um livro.
Esta entrevista foi publicada na Revista Somos Livros (edição Natal 2023). Leia aqui a segunda parte.