Memória, viagem, escrita

Por: Isabel Rio Novo a 2023-11-10 // Coordenação Editorial: Elísio Borges Maia

Talvez possamos repartir a humanidade entre aqueles que, se lhes fosse oferecida uma máquina do tempo, viajariam em direção ao futuro e aqueles que, diante da mesma oportunidade, escolheriam viajar ao passado. Desde que me lembro, sempre gostei de coisas antigas. Uma blusa de chita, manchada de bolor, amarrotada num baú do sótão, era o vestígio de uma existência. O retrato amarelento de um desconhecido, com dedicatória no verso, metido entre as páginas de um álbum de família, era alguém que me acenava de longe, pedindo-me para ser descoberto. E sempre gostei de bibliotecas, não só pela tranquilidade ou pelo ar apalaçado de muitas, mas sobretudo pelos livros. Encantavam-me os velhos, tanto os que me chegavam às mãos esburacados pela fome dos bichos, com as lombadas esboroadas, como os que tinham sido restaurados e tinham as páginas cicatrizadas, levemente crespas, cheirando ao produto que espalhavam nas folhas para matar os parasitas do papel e que deixava os dedos ásperos e os olhos a arderem. Entrava na biblioteca para preparar trabalhos, teses, artigos. Acabava a ler muitos livros que não teriam para mim nenhuma utilidade imediata, apenas porque neles encontrava alguma figura ou algum lugar que me interpelava. 

Por isso, independentemente de algumas das minhas histórias preferidas serem distopias, soube desde pequena que, se viesse a escrever, não iria construir cenários de futuro. Observo com ternura complacente o entusiasmo esperançoso dos que acreditam na possibilidade remota de alguma civilização superior à nossa decidir atravessar galáxias para estabelecer contacto e oferecer-nos a mão, se a tiver, e a tecnologia, que terá certamente, para nos levar com eles mais depressa em direção a algum futuro. A mim, bastam-me os mistérios da nossa pequena estrela, talvez já cansada de aquecer um planeta exausto. Basta-me evocar as gerações de homens e mulheres como eu que percorreram os mesmos lugares, os mesmos ou já não os mesmos, respirando o mesmo ar. E gostava de poder conversar com alguns deles de viva-voz, e não através desta sublime ilusão que é a das palavras escritas. 

Não tenho essa possibilidade, claro. Talvez seja por isso que gosto tanto de retratos e de escrever biografi as, que me oferecem a sensação de tocar numa vida ou, pelo menos, de me aproximar de uma vida que não a minha. Um ser humano diante de outro ser humano, diferentes as roupas, os penteados, os objetos que os rodeiam, as circunstâncias que lhes condicionam as opções e o quotidiano, e até as palavras que usam, mas partilhando o essencial do que os une na mesma humanidade: o amor, o medo, a solidão, o tédio, a passagem do tempo, o arrependimento, o assombro perante as coisas belas. Nesta ilusão que os livros lidos e escritos propiciam, há dias em que faço amigos à distância, converso com eles, sinto-os comigo. E tenho pena daqueles que encontro e de quem me despeço muito depressa, porque a vertigem dos dias em que me é dado viver não se compadece do tempo que não seja canalizado para o trabalho produtivo.

 

Nesta ilusão que os livros lidos e escritos propiciam, há dias em que faço amigos à distância, converso com eles, sinto-os comigo.

 

Há pouco mais de um ano, por razões relacionadas com a biografia de Luís de Camões, travei conhecimento com um curioso livro do século XVI. Era A Arte da Guerra do Mar, um tratado de estratégia naval escrito por Fernando Oliveira, um padre humanista de pensamento progressista. A passagem que mais me interessou estava no prólogo, em que o autor narrava o breve encontro com um velho que encontrara perto de Miranda do Douro. O velho, que nunca saíra da aldeia em que tinha nascido, perguntara-lhe como era feito o mar. Sem se alongar em detalhes, Francisco Oliveira contava que lhe tinha explicado como era feito o mar e que o mar não estava longe, nada longe, porque Portugal, a oeste e a sul, era recortado por ele. Imagino ambos, o velho sentado num rochedo, olhando na direção apontada pelo autor; este falando-lhe nas marés, nas correntes, na força dos ventos, nos galeões; e o velho, que nunca tinha visto o mar, muito menos um galeão, a imaginar sabe-se lá o quê. Tenho pena desse velho e desse homem, de quem me despedi tão rapidamente. Ainda assim, por um instante, estivemos próximos; ainda assim, por um instante, até o leitor que deita os olhos pacientes sobre estas linhas os conheceu e os viu também, desfazendo-se na mesma curva do tempo. Depois, há os lugares. Os lugares que foram casas, castelos, mosteiros, hospitais, e agora são espaços devolutos, escombros, paredes desgarradas.

Viajar ao passado para escrever a biografi a de Luís de Camões implicava conhecer os seus lugares, entre os quais Velha Goa, capital do Império que ele, soldado como muitos outros, foi defender. Pangim, onde aterrei, capital da Índia portuguesa desde o ano de 1759, não é a Goa onde viveu Camões. As águas estagnadas que se acumulavam após a época das chuvas eram um fulcro de malária e cólera, epidemias que, entre 1543 e 1630, dizimaram quase dois terços da população. A dada altura, o então vice-rei, o Conde de Alvor, decretou a mudança para Pangim, por razões sanitárias. De modo que Goa Velha está a uns quilómetros de distância, que podemos fazer de autocarro, mas o que resta da cidade que Camões conheceu é muito pouco. São os cheiros, a especiarias e a fragrância forte das árvores indianas, o calor húmido, que nos atinge logo no rosto e nos envolve num bafo, a vegetação exuberante, de palmares e mangueiras, a terra vermelha, que se cola à pele. E são as ruínas. Os que desembarcavam em Goa no século XVI descreviam uma cidade magnífi ca e povoada, com belas ruas, cheia de igrejas, conventos e palacetes, cercados por jar dins e pomares. Hoje, de pé, só umas quantas igrejas. Junto ao museu arqueológico, instalado no antigo mosteiro dos franciscanos, pedras brasonadas, pedaços de frisos que ornamentaram paredes, fragmentos de fontes decorativas e outros vestígios arquitetónicos amontoados documentam que esses palacetes e esses belos edifícios outrora existiram. E o meu trajeto, de ruína em ruína, era imaginar o que tinham sido esses pedaços. 

 

Depois, há os lugares. Os lugares que foram casas, castelos, mosteiros, hospitais, e agora são espaços devolutos, escombros, paredes desgarradas.

 

A dada altura, um portão solitário, ao cimo de um pequeno lanço de escadas, despertou-me a atenção. Quando os portugueses chegaram à cidade, encontraram um alcácer ou castelo mourisco, cuja fachada era em pedra negra, e que pertencia ao chefe muçulmano Yusuf Adil Shah, ou só Adil Khan, senhor de toda a região. O palácio fortificado estava protegido por um imponente conjunto de peças de artilharia que, em coordenação com as guarnições no rio, até 1510 tinham impedido os navios inimigos de chegar à cidade. Mas, nesse ano, enquanto o seu sobrinho, António de Noronha, atacava Goa por terra, Afonso de Albuquerque tinha atacado pelo rio com uma frota poderosa. Da ação concertada resultara a tomada da cidade. Os muçulmanos renderam-se, e Afonso de Albuquerque fez uma entrada triunfante em Goa, ao som de tambores e trombetas, montando um cavalo ajaezado. E foi assim que o palácio passou para a mão dos portugueses, que lhe adulteraram o nome, chamando-lhe palácio do Idalcão. 

Era difícil acreditar que aquele portão solitário e gracioso, batido pelo sol, dera passagem para um palácio. Que se abrira para o poderoso Adil Shah. Depois, para os vice-reis. Mais tarde ainda, e desde que um vice-rei velho e adoentado preferira habitar numa casa térrea, para os prisioneiros da Inquisição. Agora, abria-se simplesmente sobre a luz de uma manhã goesa ou sobre o rio do esquecimento e eterno sono. Mas visitar Velha Goa é sempre sentirmo-nos rodeados de fantasmas: rajás indianos destronados por sultões muçulmanos; sultões derrotados por conquistadores portugueses; todos eles vencidos pelo tempo que acaba por nos engolir a todos. Estávamos em Goa há um par de horas. Uma estrada de três quilómetros une as ruínas, as igrejas que restam, as torres incompletas. Alguns caminhos, como os que sobem pelas colinas, levando à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga de Goa, são exigentes, sobre tudo sob o calor inclemente do final da manhã. Outros, engolidos pela vegetação cerrada, são quase impraticáveis. Eu ainda lutava com a geografia da Velha Goa, porque as gravuras antigas carecem de perspetiva, as descrições da época, de falta de rigor e eu, de algum sentido de orientação. O cansaço levava-me a querer regressar ao conforto de Pangim, onde me aguardava um duche e o ar condicionado do quarto, até que, quase tapada pelas silvas crescidas, reparei numa nesga de pedras escuras. De vestido leve e quase descalça nas sandálias, temendo o assalto dos répteis invisíveis, hesitei. Avancei lentamente, primeiro a medo, depois mais afoita. Aquelas pedras enegrecidas eram troços da velha muralha de Goa, a mesma que os muçulmanos tinham tentado defender, a mesma que a estratégia de Albuquerque tinha rompido, aquela por quem tantos homens tinham feito correr o seu sangue. Com aquela muralha, ainda que incompleta, eu conseguia reconstituir o traçado das ruas antigas. E assim, subitamente, Velha Goa ressurgia, e a Rua Direita aparecia, cheia de gente, cavalos, liteiras, bazares, e por lá, seria capaz de jurar, caminhava um homem ainda jovem e arruivado. Mas não era um homem. Um cão escanzelado e humilde lambia-me os pés. Uma mulher sorridente, vestida com um sari vermelho, oferecia-me uma garrafa de água fresca. Era preciso regressar a Pangim. E regressei, cansada, contente com as fotografias que tinha tirado, sabendo que, atrás de mim, as pedras continuariam a desfazer-se.

A memória talvez seja um pouco como aquelas pedras escuras que insistimos em distinguir no meio das silvas que as engolem, de que tentamos aproximar-nos para lhes tocar, que insistimos em querer compreen der, em guardar em imagens frágeis, por vezes em pôr por escrito. Quanto à escrita que procura fixar essa memória, talvez a possamos comparar a uma mulher de passagem, de vestido leve e pés quase descalços, tentando guardar entre as mãos aquilo que nunca foi nem nunca será seu.

 

Este artigo foi publicado na Revista Somos Livros (edição Natal 2023).

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