A memória

Por: Paulo Gama Mota a 2023-11-09 // Coordenação Editorial: Elísio Borges Maia

Hoje o orvalho apagará o teu nome do meu chapéu.
— MATSUO BASHÔ

As nossas memórias são uma construção frágil. Algumas persistem durante toda a vida. Outras perdem-se quase de imediato. Outras ainda perduram, mas temos a noção de que vão ficando mais difusas, nebulosas. Um rosto, a memória de um local, de início podem ser memórias muito vívidas. Mas, com o tempo, ficam apenas partes, apontamentos, mesmo quando as queremos muito fixar como uma fotografia. O Haiku de Bashô reflete sobre este efeito evanescente da memória: quando o viajante parte, começa a esquecer o que deixa para trás, porque o tempo se encarregará de ir apagando as memórias. Apesar disso, muitas memórias persistem. E é da existência e consistência da nossa memória que dependemos para quase tudo o que fazemos. Nada seríamos sem a nossa memória, vivendo cada instante como se fosse o primeiro, sem capacidade para aprender.

Todos temos memórias de infância, de um brinquedo especial ou de uma brincadeira, de um local ou de um odor. Lembramo-nos de acontecimentos marcantes da nossa infância. Por vezes é um brinquedo, ou um acontecimento a que só nós demos importância, como ter ficado sem travões da bicicleta numa descida. Talvez recordemos o susto da situação, ou a forma como saímos dela. As nossas memórias são privadas e exclusivas. Mesmo as memórias de acontecimentos vivido com outras pessoas tendem a ser um pouco diferentes entre quem os viveu, porque a construção dessa memória é influenciada pelo que sabíamos naquele momento, se estávamos entusiasmados, tensos ou desinteressados, ou seja, o nosso estado fisiológico interno, e ainda por outras memórias que invocámos, por exemplo, relembrando uma situação semelhante. 

A ausência da memória é para nós assustadora, perturbadora. Não conseguimos imaginar como poderá ser. H.M. foi um paciente invulgar e, por isso, estudado durante muitos anos. A conversação fluía normalmente com ele durante algum tempo. Mas, se durante a mesma se aludisse a algo que foi falado uns 5 minutos atrás, ele não teria a menor ideia de tal ter acontecido. A investigadora Brenda Milner entraria na sala e cumprimentar-se-iam como desconhecidos, poderiam falar do tempo ou de uma memória dele. Caso ela saísse da sala e voltasse a entrar, H.M. cumprimentá-la-ia, de novo, como se fosse a primeira vez que a via. Este paciente tinha sido sujeito a uma operação em que lhe foi removida uma secção do cérebro, que era o foco de surtos epiléticos incontroláveis. E embora as suas memórias anteriores à operação permanecessem intactas, desde então não conseguiu adicionar mais memórias, vivendo sempre no instante presente. Um instante que durava dois ou três minutos. Ficámos assim a saber que o hipocampo é essencial para tornar permanentes as memórias dos acontecimentos vividos ou de nomes ou factos novos. Sem ele, tudo se perde à medida que vai acontecendo.

 

O hipocampo é essencial para tornar permanentes as memórias dos acontecimentos vividos ou de nomes ou factos novos. Sem ele, tudo se perde à medida que vai acontecendo.

 

Se ficámos a saber que o hipocampo é muito importante na formação das memórias, isso não nos disse qual a sua base material. O que é realmente a memória? Como se forma? Onde fica guardada? Será qualquer coisa como a informação que guardamos em discos rígidos ou em SSDs? São zeros e uns? Como são fisicamente as memórias? E porque nos esquecemos? As memórias são apagadas? 

A compreensão de como as memórias se formam representou um dos mais notáveis avanços na história das neurociências. 

Não, as memórias não são como zeros e uns na memória de um computador. São algo de muito mais complexo e, ao mesmo tempo, de uma surpreendente simplicidade se pensarmos na informação que guardam. Os neurónios são as principais e mais especializadas células no nosso cérebro. Ligam-se a outros neurónios dos quais recebem sinais que transportam através de um longo ‘braço’ (axónio) até ao neurónio seguinte, ou neurónios seguintes, que lhe sejam adjacentes. Esse sinal é um impulso eléctrico que percorre a membrana do axónio, até à sua extremidade, onde se transforma num sinal químico, por via da libertação de um neurotransmissor que vai actuar sobre o neurónio seguinte. O trabalho notável de Eric Kandel, um judeu austríaco que fugiu dos nazis, com a família, aos oito anos, e foi Nobel da Medicina em 2000, permitiu a compreensão de como as memórias realmente se formam. Rompendo com um princípio estabelecido entre os neurocientistas dos anos 50 que achavam que um animal simples não poderia servir de base para compreender o nosso comportamento, Kandel assumiu, como Lorenz, Tinbergen e os primeiros etólogos, que os comportamentos dos animais assentavam em princípios bastante semelhantes e, ao nível mais básico, provavelmente idênticos aos dos humanos. A capacidade de reter uma informação para mais tarde a usar como forma de antecipar algo e reagir de forma mais adequada é algo que evoluiu muito cedo entre os animais. As abelhas são animais que há décadas sabemos usarem a memória para se orientarem e encontrarem as fontes de alimento e para regressarem à colónia. Assim, Kandel decidiu usar um invertebrado simples, uma lebre-do-mar, como animal modelo das suas experiências: tinha poucos neurónios e eram grandes. O que descobriu foi que era possível sensibilizar neurónios, criar habituação ou uma resposta condicionada. Neste último caso, se houver um estímulo neutro que é emitido antes de um estímulo negativo, passado algum tempo, o animal, ou o neurónio, começa a responder imediatamente após o estímulo inicial, antecipando que se vai seguir o outro. Estas respostas podiam manter-se por horas. Deste conjunto de investigações ficámos a saber que as memórias são guardadas num processo em que há conjuntos de neurónios que respondem ao mesmo tempo, formando um padrão, sempre que um determinado estímulo surge. 

 

Podemos dizer que não há memória num neurónio, mas no padrão de actividade colectiva e simultânea

 

É esse padrão, esse conjunto de neurónios a produzir sinais eléctricos em simultâneo, que constitui a memória daquela imagem, som, ou outra modalidade de estímulo que se constituiu em memória. Assim, a memória é a activação simultânea de determinados neurónios que formam um padrão. O mesmo neurónio pode participar em muitos padrões. Mas, cada padrão é exclusivo de uma memória. 

Surge-nos como uma surpresa que um processo tão simples possa dar origem a pedaços de informação tão detalhada, multidimensional (imagens, sons, cheiros), mas foi exactamente isto que os neurocientistas vieram a descobrir. A consolidação das memórias, para lá de alguns minutos, tornando-as perenes envolve mais alguns processos, mas o padrão de activação dos neurónios continua a ser o mecanismo de base. Neste caso, uns processos suplementares ocorrem nos próprios neurónios, que consolidam esta simultaneidade: ligações físicas reforçadas entre esses neurónios. Assim, podemos dizer que não há memória num neurónio, mas no padrão de actividade colectiva e simultânea.

Relembrar ajuda a reforçar a memória das coisas? Sim e não. Muitas memórias não são apenas uma, mas várias associadas. Saborear comida ou vinho pode evocar várias memórias de substâncias que consideramos estarem presentes naquele sabor, naquele momento. Numa situação posterior, o saborear pode ter algumas diferenças, porque percepcionamos mais um sabor, ou porque um outro passou, desta vez, sem ser notado. Se nem todas as memórias de um acontecimento forem invocadas num evento de ‘lembrança’, é possível que algumas conexões percam força. Assim, com o tempo, as memórias vão-se alterando porque nem todas as gavetas foram abertas, por uma razão qualquer. Por isto, as memórias evocadas vão sofrendo um processo de transformação sempre que são evocadas. Mais uma vez, bem diferente do que se passa com a informação que guardamos no disco do computador. 

 

Com o tempo, as memórias vão-se alterando porque nem todas as gavetas foram abertas, por uma razão qualquer.

 

E há memórias inventadas? Sim. A formação de falsas memórias resulta do processo pelo qual as memórias se formam e se reforçam e alteram ao ser evocadas. Algumas falsas memórias até são frequentes: "Tinha a certeza de ter posto as chaves aqui!" É possível que durante a evocação das memórias sejam realizadas outras conexões que não existiam no momento da construção inicial da memória. Estas podem preencher o quadro, dando- -lhe mais coerência ou relacionando com outras memórias entretanto formadas. É assim possível que sejam associadas partes que não correspondem ao que realmente aconteceu. E assim surgem as falsas memórias. Por exemplo, podemos lembrar-nos de um piquenique em que participámos ou ter a certeza de que foi a pessoa A que produziu determinada afirmação numa conversa ou conferência, por fazer sentido para nós, quando afinal só reconstruímos o piquenique em que não estivemos a partir das várias vezes que ele nos foi contado, ou temos a convicção de ter sido A e não B a proferir a afirmação através de uma construção baseada no que para nós parece lógico. Estas falsas memórias são muito difíceis de distinguir de uma memória verdadeira. 

A memória é prodigiosa. Dependemos dela para dar coerência às nossas experiências quotidianas. A todas elas. Num certo sentido, como afirmou, em recente entrevista, Salman Rushdie: “Sem memória não podemos compreender o 'agora'. O passado cria o presente, que não pode existir sem ele.” Sendo fugidia, sensível à experiência e menos precisa que a de uma câmara de filmar, a memória é também mais rica, combinando o que se vê e ouve com o que se sente, cheira e saboreia e ainda com as memórias passadas numa complexa rede de relações.

 

Este artigo foi publicado na Revista Somos Livros (edição Natal 2023).

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