Depois de “Apneia”, o último adeus de Tânia Ganho ao pai
Por: Beatriz Sertório a 2024-07-18
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Chama-se O meu pai voava e é o mais recente livro de Tânia Ganho, autora finalista do Prémio Livro do Ano Bertrand 2020 com o romance Apneia, uma história desarmante sobre violência doméstica que arrebatou os leitores portugueses. Sem sinopse e sem anúncio, este seu sucessor apresenta-se ao leitor apenas com o seguinte excerto na contracapa: “Não sei para quem escrevo estas palavras. Para ele, talvez. Desde que morreu, escrevo sem parar. Escrevo para recuperar o fulgor com que ele viveu”.
Livro de memórias, em nada semelhante ao romance que o precedeu, não deixa contudo de partilhar o sentimento que lhe dá título. Para a autora, o luto foi como “um suave submergir, em câmara lenta, um movimento passivo” do “corpo que se deixa envolver por uma densa massa de água” que o puxa para o seu âmago. O luto como um lugar onde, sem poder respirar, se afunda em silêncio — ela que, como autora e tradutora, vive das palavras.
Afinal, também o seu pai se foi afundando no seu próprio silêncio, até ao derradeiro final. “Cinturão negro de karaté, alpinista, astrónomo amador, inventor medalhado, médico extraordinário”, como o descreve Ganho, foi vítima de uma “morte lenta de Alzheimer, a sua ideia íntima de inferno”. No final, não foi o Alzheimer que ditou a sua partida para outros voos, afinal “não se morre de Alzheimer” mas foi o Alzheimer que fez com que as palavras lhe fossem morrendo dentro de si, até restar apenas o silêncio.
No velório, perguntam-me de que morreu ele. «Tinha Alzheimer», digo, sentindo-me desconexa no meio de tantas pessoas, conversas sussurradas, movimentos. «Não se morre de Alzheimer», responde a médica que me interpelou. A minha falta de rigor confrange-me. Quando, mais tarde, a rapariga da agência nos entrega uma pasta com documentos, procuro o atestado de óbito passado pelo médico no hospital. Causa de morte: «Pneumonia adquirida na comunidade. Insuficiência respiratória. «Da próxima vez que me perguntarem de que morreu o meu pai, saberei responder com as palavras exatas.
Para nós, ele morreu de Alzheimer.
Curiosamente, Tânia Ganho foi a tradutora de livros como Notas sobre o Luto, de Chimamanda Ngozi Adichie, um tributo da autora nigeriana ao falecido pai, e Não saí da minha noite, da Annie Ernaux, um testemunho da luta da mãe da Nobel da Literatura com a doença de Alzheimer — livros dos quais O meu pai voava é agora par. Existem outros: Joan Didion, Joyce Carol Oates, Julian Barnes, Rosa Montero, Imma Monsó… Todos eles escreveram sobre o luto, e Ganho leu-os a todos. Através da leitura, procurou preparar-se para o embate da morte, apenas para descobrir que nada nos pode preparar para ele, e que não existem duas experiências de luto iguais.
Apesar da singularidade da experiência de vida de cada um, e deste ser um livro profundamente pessoal, não deixa, afinal, de ser um livro sobre aquilo que nos une a todos. Sobre o medo de ver alguém que amamos definhar aos poucos, com uma doença ainda pior do que a morte. Sobre a dor de perder alguém com uma alegria de viver tão grande que podíamos acreditar que viveria para sempre. Alguém tão maior do que a vida que acreditávamos mesmo que poderia voar.