Milhões de animais e ainda mais milhões de emoções
Por: João Céu e Silva a 2024-11-29
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Desde há milénios que os seres humanos aprenderam a domesticar várias espécies animais e fizeram delas os seus amigos especiais. É na América do Sul que está a maior concentração de espécies, no entanto as famílias de todo o planeta escolheram uma pequena minoria de espécies para um convívio em que o animal de companhia é rei. Um comportamento que tem crescido neste século e que a pandemia de covid-19 fez aumentar em muito, tendo sido o cão, aquele que é considerado o mais fiel amigo dos seres humanos, o principal escolhido.
700 milhões é o número mínimo da população canina mundial.
500 milhões de gatos domesticados é o número mínimo da população mundial.
Cerca de 39% das famílias portuguesas têm um cão, ou seja, perfazem uma população de dois milhões e cem mil caninos. Representam uma pequena parte dos 700 milhões de animais desta espécie que se admite partilharem a vida com seres humanos em todo o mundo e, sendo os preferidos, têm a companhia de uma outra espécie nesse estatuto de preferência dos portugueses. Afinal, coabitam com as famílias cerca de milhão e meio de gatos.
39% das famílias portuguesas têm um cão.
32% das famílias portuguesas têm um gato.
O que faz com que, entre 8,7 milhões de espécies de animais que habitam a Terra, sejam os cães e os gatos os preferidos da humanidade? E que, no caso português, até exista há alguns anos uma lei, a 69/2014, que criminaliza o abandono e os maus-tratos a animais de companhia? Respostas não faltam, podendo escolher-se, entre vários testemunhos e estudos especializados, dois exemplos bastante representativos: ao chegarem a casa, 78% dos estado-unidenses donos de cães fazem primeiro festas aos seus animais e só depois é que cumprimentam os familiares. Ou, no caso dos gatos, um em cada três donos acha que o seu animal tem capacidades para ler os pensamentos do dono.
78% dos norte-americanos donos de cães fazem primeiro festas aos seus animais e só depois é que cumprimentam os familiares.
1 em cada 3 donos de gatos acham que o seu animal tem capacidades para ler os pensamentos do dono.
Esta ligação com cães e gatos não é de hoje e ambas as espécies ajudaram o Homem a tornar-se naquilo que é. Tudo começa há 30 mil anos, quando os cães apareceram no planeta, descendentes de duas raças de lobos do continente asiático. Estes animais foram os primeiros a serem domesticados e a conviver com o ser humano, desde que, há sete mil anos, apareceram na Europa e o ajudaram na caça e na atividade pastorícia. Quanto aos gatos, a sua origem é ainda mais distante, tendo surgido no Médio Oriente há cerca de 130 mil anos e expandindo-se para o resto do planeta. O gato doméstico é mais recente, crê-se que de há dez mil anos, e o convívio com os humanos deve-se à prática da agricultura e de os felinos ajudarem no combate às pragas de ratos e de outros roedores, e, desse modo, terem a alimentação facilitada.
A importância destas duas espécies para a humanidade é tão grande que as sociedades até decidiram criar uma homenagem: o Dia Internacional do Gato, a 8 de agosto, e o Dia Internacional do Cão, a 26 do mesmo mês. Entre estas duas datas, existem várias dedicadas aos animais, como a do Dia Internacional do Animal Abandonado, a 16 de agosto. Esta celebração não impede que um número impressionante de cem mil animais seja abatido nos canis portugueses todos os anos, locais onde vivem permanentemente cerca de 80 mil animais que são recolhidos oficialmente.
8 de agosto é o Dia Internacional do Gato.
26 de agosto é o Dia Internacional do Cão.
16 de agosto é o Dia Internacional do Animal Abandonado.
A convivência com cães e gatos fez com que os donos tenham muitas curiosidades sobre esses animais, sendo uma das principais a comparação entre os anos de vida humana e os dessas espécies. Os estudos mais recentes apresentam valores diferentes daqueles que antes vigoravam, como de cada ano do ser humano equivaler a sete de um cão. Essa conversão já não é tão simples e passaram a existir tabelas próprias para esse cálculo, que levam em conta a raça, o tamanho e a idade. No caso dos gatos, também há contas mais atualizadas, que, dizem que aos dois anos, o gato tem o equivalente a 24 anos do Homem, e que, a partir daí, cada ano de vida corresponde a cerca de quatro a cinco anos humanos e que, ao completar dez anos, rondará os 56 anos dos donos.
O risco de episódios de infartos entre os donos de gatos reduz-se em 30% segundo estudos realizados e a principal razão é de a companhia desses animais diminuírem o stress, além de terem outros benefícios, como o de evitar a solidão e a ansiedade.
Esses estudos foram mais longe e mostram números interessantes, como os de um gato que viva nove anos passa três deles a dormir ou, o mais impressionante, de que da reprodução de um único casal de gatos, e, depois, das crias, possam resultar 420 mil descendentes em sete anos. Não se ficam por aí as estatísticas, existindo uma na área da saúde que é muito importante: o risco de episódios de infartos entre os donos de gatos reduz-se em 30% segundo estudos realizados, e a principal razão é que a companhia desses animais diminuem o stresse, além de terem outros benefícios, como o de evitar a solidão e a ansiedade. Outro bom exemplo desse convívio feliz entre donos e animais de companhia foi apurado em 2011, o ano em que o sismo seguido de tsunâmi é que causou o desastre, e não o contrário, e um levantamento concluiu que essa relação foi de grande importância para a sobrevivência de muitas das vítimas humanas.
Além dos gatos e cães
Se estas duas espécies de animais são as preferidas como companhia, existem outras eleitas pelos seres humanos para a mesma função. É o caso de três tipos de pássaros que se tornaram presença habitual em muitas casas: periquitos, canários e pintassilgos. Vivem em média dez anos e, durante esse período, enchem as casas de um chilreio que os torna muito apreciados como companhia. Não ocupam muito espaço, pois raramente medem mais do que doze centímetros, sendo os periquitos os maiores e os que mais vivem em cativeiro, enquanto os canários se destacam pelo canto constante quando estão felizes, e os pintassilgos uma distração pelo gosto em saltitar no interior das gaiolas.
10 anos é o tempo de vida médio dos pássaros domésticos.
1000 anos é o tempo que tem a relação entre os seres humanos e os peixes domésticos.
A eleição de animais de companhia tem uma outra espécie que se tornou, nos últimos mil anos, numa perfeita parceria com os seres humanos, a dos peixes domesticados. A interação com os peixes num aquário começou na China e espalhou-se por todo o planeta, não só como elemento decorativo de uma casa, mas como companhia, porque a criação de um mundo aquático exige dedicação e horas de observação das espécies que povoam esse pequeno mar.
As espécies exóticas são outra variedade de animais de companhia, menos numerosas, mas frequentes em vários países, como as várias espécies de roedores, as chinchilas ou porquinhos-da-índia, e, entre os répteis, os camaleões e iguanas. Estas espécies também são protegidas pelas sociedades, tanto que 180 países assinaram a convenção que evita que o comércio de espécies em risco ponha em causa a sobrevivência desses animais.
Uma economia ao serviço
O crescimento do número de espécies que os seres humanos adotam tem feito com que o setor empresarial se tenha vindo a transformar. Sete mil veterinários exercem esta profissão em Portugal, sendo a área dos animais de companhia a que ocupa metade destes profissionais. Um número que duplicou na última década, bem como o da expansão do setor de alimentação em todo o mundo, neste caso, cerca de 60 %, no que respeita ao mercado para animais de companhia nos últimos sete anos. Os cães representam o maior consumo de alimentos, avaliado em 80 mil milhões, os gatos, 32%, e os restantes animais, 19%. Prevê-se que o volume de negócio da alimentação para estes companheiros deverá atingir, no fim da década, um total de 160 mil milhões de euros. Portugal não escapa a esse crescimento e ocupa o oitavo lugar entre os países da União Europeia no que respeita a lares com cães. Num total aproximado de 90 milhões destes animais no continente europeu, são a Alemanha e a Inglaterra que disputam a primeira posição, com cerca de nove milhões cada um.
7000 veterinários exercem esta profissão em Portugal.
160 mil milhões de euros é o volume de negócio da alimentação para os animais de estimação.
A alimentação de cães e gatos é hoje olhada com outras regras, havendo tabelas para o que devem comer. Um exemplo: 55 kcal por cada quilo que o cão pesa é a dose correta para os animais de tamanho médio. A alimentação deve ser variada, equilibrada e de fácil digestão, devendo haver o cuidado de ter nos hidratos de carbono o principal ingrediente (44%), seguido das proteínas que fortalecem os músculos (25%), das gorduras ricas em ómega 3 (14,5%) e dos minerais (8%). A quantidade deve ser corrigida se o cão engordar ou emagrecer. No que respeita aos gatos, a proporção é diferente: 250 kcal é a média que um gato de quatro quilos necessita diariamente, em pequenas quantidades e divididas por meia dúzia de refeições.
125 euros é o custo médio anual de um bom seguro.
110 euros pode ser a despesa inicial média com um cão.
Além da alimentação, têm surgido vários serviços que pretendem facilitar a vida aos donos de cães e gatos. A legislação portuguesa passou a exigir a implantação de um microchip em todos eles, aplicação que custa 30 euros, e que não só permite cumprir a lei e evitar multas, como facilita a identificação eletrónica em caso de os animais se perderem. Também passou a estar disponível uma gama de seguros que protegem os donos das asneiras dos cães, tendo um custo médio anual de 125 euros para cães entre os 2 e 4 anos, seja ele um pastor-alemão, um chihuahua ou um rafeiro. O custo de um seguro para gatos é semelhante, sejam de raça ou não. Estas coberturas abrangem o acesso a veterinários, à responsabilidade civil e jurídica, à eutanásia ou perda. No caso de cães de raças consideradas perigosas, a legislação impõe outros valores e 50 mil euros é o capital mínimo exigido para um seguro destes. Aviso: os cães podem ser educados através de aulas particulares ou coletivas prestadas por um treinador.
10 euros é a despesa mínima inicial com um gato.
30 euros é o custo da implantação do microship que a legislação portuguesa exige.
Entre as obrigações a que os donos de cães e gatos são sujeitos, estão as vacinas, uma medida fundamental para evitar doenças e devem ser inoculadas entre as seis e oito semanas de idade, sendo reforçadas todos os anos ou de acordo com a inscrição feita pelo veterinário no boletim de vacinação. Os cuidados com os principais animais de companhia têm outros custos, mais elevados com os cães, devido às suas necessidades iniciais: uma cama e um cobertor, vasilhas para a comida e a água, coleira e uma trela resistente. A aquisição de brinquedos pode evitar que o cão roa a mobília por causa dos dentes a crescer. Os gatos saem mais em conta, necessitando de menos vacinas e, além do equipamento básico, a despesa é com a areia para a caixa em que faz as necessidades.
Testemunhos de uma amizade
É na literatura que o amor aos animais de companhia mais tem sido demonstrado pelos seres humanos. O primeiro relato dessa amizade surgiu há quase três mil anos, na Odisseia, quando Homero conta que o cão Argos esperou vinte anos pelo regresso de Ulisses e foi o único ser da casa do guerreiro a reconhecê-lo, morrendo minutos depois da longa espera pelo dono. Outro testemunho desse amor aparece num livro surpreendente para 1933, quando Virginia Woolf publica Flush: Uma Biografia. A história do cocker spaniel da poetisa Elizabeth Barrett Browning, que adquirira uma ligação emocional e espiritual com a dona através de uma linguagem e atitudes que ambos criaram e desempenhavam para se completarem.
O Japão é o melhor exemplo de um país onde a relação entre donos e animais de companhia, com destaque para os gatos, é tema constante nos livros. É no ano de 1990 que a palavra gato começa a aparecer frequentemente em títulos de livros de autores japoneses e, desde então, o número de variações nunca deixou de aumentar, até às centenas atuais. Contudo, já em 1905, o escritor Natsume Soseki publicara uma sátira à Época Meiji intitulada Eu Sou Um Gato, em 1936, Junichiro Tanazaki lançara uma novela com o nome Um Gato, Um Homem e Duas Mulheres, e, em 1978, o autor de policiais Jiro Akagawa dera início à publicação da série com dezenas de volumes intitulada Calico Cat Holmes. Um dos romances mais recentes é de 2012, em que Genki Kawamura fez da pergunta Se os Gatos Desaparecessem do Mundo, o título do seu livro. O número de títulos de autores deste país que incluem a palavra “gato” é tão gigantes gigantesco que se pode dizer que, além de responder aos anseios dos leitores, tem sido a salvação do mercado editorial.
No Ocidente, são os cães que mais têm inspirado as narrativas com animais. Em 1900, surgiu o cão Toto, que protagonizava a série de livros infantis de O Espantoso Feiticeiro de Oz, de L. Frank Baum, e reaparece no filme O Feiticeiro de Oz quarenta anos depois. É um terrier que acompanha as aventuras da protagonista Dorothy Gale e tem a particularidade de ter sido ilustrado em três versões da raça ao longo da sua “vida literária”: Cairn Terrier, Yorkshire Terrier e Boston Terrier. Já no cinema, o pastor-alemão Rin Tin Tin foi um campeão em Hollywood devido às façanhas como cão de guarda, de dedicação aos donos e com atos heroicos, transformando-se no maior padrinho de milhares cães que receberam o seu nome em todo o mundo.
Em Portugal, dois escritores ficaram intrinsecamente ligados aos cães com que conviveram e que introduziram nas suas obras. Três foram os cães que retiraram o medo que José Saramago tinha destes animais, devido ao convívio na casa de Lanzarote com Camões, Greta e Pepe, e são também três os cães com uma grande presença nos seus romances: O Cão das Lágrimas, em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, Achado, em A Caverna, e Constante, em Levantado do Chão. Cem mil exemplares foi o impressionante número atingido há uma década pelo romance Cão Como Nós, de Manuel Alegre. Relata a história de Kurika, o cão que não queria ser apenas cão, mas membro da família.