Annie Ernaux: “Nos meus livros não há autoficção. Eles são mesmo biográficos”
Por: Marisa Sousa a 2023-01-03
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"A única história que temos é a nossa e ela não nos pertence".
— José Ortega Y Gasset
Annie Duchesne nasceu em 1940 na Normandia. Cresceu em Yvetot, uma pequena cidade, onde seus pais geriam um café-mercearia. Formou-se em Letras Modernas e foi professora de Literatura. Divorciou-se no início dos anos 1980 e, em 2000, deixou definitivamente o ensino para se dedicar à escrita. Muitas vezes apelidada de “obscena”, por abordar temáticas consideradas “indignas da literatura”, assume a escrita como um ato político. Em 2020, a revista New Yorker dizia que, com os seus 20 livros, a autora "dedicou-se a uma única tarefa: a escavação de sua própria vida". Considerada a mãe da autoficção sociológica contemporânea, Ernaux assume escrever “algo entre literatura, sociologia e história”. Os que a leem sabem que fala da vida tal como ela é, usando a escrita como uma lâmina afiada, arrepiando, aqui e ali, memórias e dores que são de todos.
Três das obras publicadas em Portugal
A sua estreia literária aconteceu de forma contundente, em 1974, com Cleaned Out, um relato ficcional de seu próprio aborto ilegal (que ocorreu em 1964, onze anos antes da despenalização no país.). Logo nas primeiras páginas, Denise Lesur, a protagonista, questiona-se sobre como tudo aconteceu, recordando a sua vida. O tema foi revisitado 25 anos depois, no livro O Acontecimento (Happening), no qual a autora "filtra as suas memórias e as anotações do seu diário, que datam daqueles dias". Foi adaptado ao cinema pela realizadora francesa Audrey Diwan e viria a vencer o Leão de Ouro de melhor filme, o prémio máximo do Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2021.
Na biografia que disponibiliza no seu site (www.annie-ernaux.org), é referido que entre os principais temas influenciadores do seu trabalho figuram "o corpo e a sexualidade; os seus relacionamentos; a desigualdade social e a experiência de mudança de classe através da educação; tempo e memória; e a questão, abrangente, de como escrever essas experiências de vida". Apesar disso — ou, talvez, precisamente por isso —, as suas experiências pessoais representam a experiência de tantos outros, que fazem espelho dos seus relatos.
Uma Paixão Simples (1992), aborda o vício sexual, o desejo e sua satisfação, através de uma narrativa que nos dá a conhecer a sua curta relação com A.. A obra começa com a protagonista a questionar-se se deve ver, pela primeira vez, um filme pornográfico. “Pareceu-me que a escrita devia tender para isso, para a impressão que provoca o ato sexual, a angústia e o espanto, uma suspensão do juízo moral.” (p.8). Esta obra foi também adaptada para o cinema, em 2021, num filme realizado por Danielle Arbid.
Os Anos (publicado em 2008), equiparado, em França, a Em Busca do Tempo Perdido, a icónica obra de Marcel Proust, abrange seis décadas de história social e pessoal, desde a sua infância, no seio de uma família de classe trabalhadora, em tempos de guerra; na Normandia do pós-guerra; passando pelas revoltas estudantis de 1968. A narrativa que coloca “o mundo em palavras”, tem espaço para política, literatura, música, televisão, educação, casamento, divórcio, anúncios e slogans populares — tudo isto relatado por um narrador que nunca usa a palavra “eu”. “É a história da minha vida e a de milhares de mulheres que também estavam à procura de liberdade e emancipação” (France Press, 2022). Em 2019, figurou entre os finalistas do Internacional Man Booker Prize, tendo o júri considerado que "a autobiografia ganha uma nova forma, simultaneamente subjetiva e impessoal, privada e coletiva".
No dia 6 de outubro de 2022, a Academia Sueca anunciava a atribuição do Prémio Nobel da Literatura, descrevendo a sua obra como “intransigente e escrita em linguagem simples, limpa”, elogiando-a pela “coragem e acuidade clínica com que descobre as raízes, os distanciamentos e as restrições coletivas da memória pessoal”. Aos 82 anos, é a primeira mulher francesa a ganhar o Prémio Nobel da Literatura e a 17ª mulher (entre 119 vencedores).
Até “desaparecermos na multidão anónima de uma geração” (Os Anos), impacientamo-nos, enquanto esperamos, ansiosamente, a chegada a Portugal dos restantes livros da autora.