Os seres vivos de Saramago
Por: Bertrand Livreiros a 2023-01-16
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“Saramago vai durar o que durar a literatura portuguesa.”
— Mário Cláudio
“Só um livro é capaz de fazer a eternidade do mundo.”
— Eça de Queirós
Em junho de 2018, aventurámo-nos numa edição especial sobre Saramago. Dedicámos-lhe grande parte da nossa revista, dedicámos-lhe tempo, pesquisa quase obsessiva e uma saudade que se vai fazendo eterna. Desengane-se quem esperava daqui alguma imparcialidade. Saramago, como Pilar nos confessou em entrevista, “milita-se” porque “nos sai da vontade.” Se estivesse fisicamente entre nós, teria feito 100 anos no dia 16 de novembro. O que dizer quando (sentimos que) tudo já foi dito, quando tantos lhe reviraram a vida à procura de razões, quando tudo parece já ter sido analisado à luz das doutas teorias?
A folha em branco pedia conjugações à altura de uma celebração. O início, exigia título. Detivemo-nos numa frase de Pilar, sobre os livros de Saramago: “Estes livros levam o autor dentro. (…) Apetece dizer ‘cuidado, estes livros contêm muita vida, tratemo-los com a paixão e o esmero que merecem todos os seres.' Todos os seres vivos.” (Jornal de Notícias, 28 de maio de 2014). Sem rota traçada, fomos precisamente revisitar alguns desses “seres vivos”: os seus livros, guiados pela voz do autor. Nas suas próprias palavras “As palavras são instrumento de morte — ou de salvação.”
Para esta missão, foram fundamentais duas obras que têm Saramago a correr-lhes nas veias e um coração que bate em cada página: As 7 vidas de José Saramago (Companhia das Letras), de Miguel Real e Filomena Oliveira, e Saramago, os Seus Nomes. Um álbum biográfico, Ricardo Viel e Alejandro García Schnetzer. A recordação é um lugar onde a admiração e o espanto florescem.
TERRA DO PECADO
(1947)
“Cremos justamente porque não sabemos e é esta constante ignorância que mantém a fé, qualquer que ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, se fosse conhecida, talvez destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grande manicómio. (...)”
“Escrevi o meu primeiro livro aos 25 anos, em 1947. Chamava-se A Viúva. (…) o editor achou que não era um título comercial e sugeriu que se chamasse Terra do Pecado. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma actividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título…”
José Saramago, O Independente, maio de 1991
OS POEMAS POSSÍVEIS (1966)
No silêncio dos olhos
"Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?”
“No fundo, eu não deixei de ser poeta, mas um poeta que se exprime através da prosa e provavelmente — e esta é uma ideia lisonjeira que eu quero ter de mim mesmo — é possível que eu seja hoje mais e melhor poeta do que quando escrevia poesia.”
José Saramago
DESTE MUNDO E DO OUTRO (1971)
“Amigos, esta história é verdadeira. Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla.”
“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se fria um banquete universal “
José Saramago, “Carta para Josefa, minha avó”, Deste Mundo e do Outro
MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA (1977)
“Seremos nós o deserto ou deixam-nos desertos?”
“[este livro é] um balanço, uma colagem de glóbulos, um exame radiológico, uma consciência que se examina a si mesma”.
José Saramago
“Há muito de autobiografia ali mas é paralela.”
José Saramago
“[Padre] António Vieira é uma dívida que reivindico. E mesmo que me digam que tal influência não se nota assim tanto na minha própria linguagem, sei que, profundamente, é o verbo vieiriano que vai ressoando no meu cérebro enquanto escrevo.”
(José Saramago, Correio do Minho, fevereiro 1983)
LEVANTADO DO CHÃO (1980)
Levantado do Chão foi recusado por duas editoras (Moraes e Bertrand) e aceite pela Editorial Caminho, iniciando a sólida amizade e o encontro feliz entre o autor e o editor Zeferino Coelho.
“De tão pequenas coisas depende, como se sabe, a felicidade das pessoas.”
“Então aconteceu-me um daqueles momentos muito belos que acontecem, quando acontecem. Aí a páginas vinte e tal, sem ter pensado nisso, começo a escrever-me libertando-me de toda essa história da pontuação, escrevendo como depois o livro saiu. E a tal ponto que quando o acabei tive de voltar às vinte e tal páginas iniciais para pô-las de acordo com o resto.”
José Saramago, Jornal de Letras, 1997
“O livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro.”
MEMORIAL DO CONVENTO (1982)
Inicialmente, a obra ia intitular-se apenas O Convento. Foi alterado para não se confundir com O Mosteiro, o romance de Agustina Bessa-Luís.
“Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.”
Blimunda Sete-Luas
“Muitas vezes me perguntei: porquê este nome? (…) nenhuma mulher em Portugal, que eu saiba, se chama hoje assim.”
José Saramago, O destino de um nome, revista Blimunda, 1991
“As minhas personagens verdadeiramente fortes, verdadeiramente sólidas são sempre figuras femininas. Não é porque eu tenha decidido, é porque me sai assim, Não há nada premeditado. Provavelmente isso resulta de que parte da humanidade em que eu ainda tenho esperança é a mulher.”
José Saramago, Folha de S. Paulo, 1995
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS (1984)
“A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz.”
“O meu conhecimento de Ricardo Reis vem dos poemas que saíram na revista Athena — já lá vão muitos anos. A minha relação com Fernando Pessoa começou por ser a minha relação com Ricardo Reis. (…) Por um lado irritava-me aquele desprendimento do mundo, das coisas e das pessoas, aquele amor que não chega a ser porque não se realiza nunca. Mas por outro lado fascinava-me o rigor, a expressão medida, mesmo que o verso tivesse de ser violentado. Fascinava-me o ele ser senhor da palavra em vez de ser esta que o influenciava a ele.”
José Saramago, 2008
A JANGADA DE PEDRA (1986)
“Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os atores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao serviço da sabedoria.”
Real Academia Sueca, 8 de outubro de 1998
“(…) como é difícil traçar a fronteira entre aquilo a que chamamos verdade e o que não é.”
“Comecei a pensar chamar-lhe simplesmente A Jangada (…) a certa altura, pensei também em A Grande Pedra do Mar, por exemplo. O título é importante, é a primeira coisa que preciso de ter, como uma espécie de mote, de diapasão (…)”
José Saramago, novembro 1986
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