O encontro próximo com a morte que inspirou o novo livro de Afonso Cruz
Por: Beatriz Sertório a 2024-12-11
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Um livro que nasce de um beco. Assim descreve Afonso Cruz o seu mais recente livro, O que a Chama Iluminou (Companhia das Letras). Por um lado, o beco em que se viu encurralado por dois blindados conduzidos por carabineiros em Santiago do Chile, em 2019. Por outro, o quase “beco sem saída” em que se encontrou quando um jipe em contramão embateu no carro onde seguia em Punta Arenas, nesse mesmo ano. Dessa viagem atribulada (e potencialmente fatal) ao Chile, resultou uma reflexão sobre o fim das coisas, que se materializou primeiro num espetáculo e agora em livro.
O que a Chama Iluminou foi apresentado pela primeira vez no Festival Utopia, em Braga, em novembro de 2023. Num espetáculo que combinava música, dança, narração, fotografia e performance, o escritor cantou, tocou e contou a história de uma viagem que fez ao Chile, onde aterrou no meio de uma convulsão política. Neste país que, segundo o autor, se presta a falar sobre o fim — inserido geograficamente numa região frequentemente apelidada de “Fim do Mundo” —, Afonso Cruz, por duas vezes, quase enfrentou o seu próprio fim.
Desses dois acidentes potencialmente fatais, nasceu uma reflexão terna e desapiedada sobre o fim das coisas, que chega adora às livrarias sob a forma de uma novela-ensaio. Um livro sobre o fim do mundo, nas suas mais variadas versões; o deserto de Atacama, onde as mulheres continuam a revolver a areia em busca de partes do corpo dos maridos e dos filhos, vítimas da ditadura de Pinochet; o fim das tribos indígenas, das línguas; o planeta que se afunda; vidas trocadas por botões; o pó de onde todos viemos e a que todos regressaremos…
Do outro lado desse “beco escuro” está, afinal, a arte, que resiste para além da morte, e a salvação que só a beleza nos pode oferecer — como se pode ler na introdução de O que a Chama Iluminou, “a transformação do mundo em narrativa, em representação, em memória, em arte, em algo que, não sendo a própria coisa, é a sua dimensão depurada ou destilada.” O título do livro, uma paráfrase de uma citação de Antoine de Saint-Exupéry, ressoa como uma nota de esperança, uma vela que ilumina a escuridão e permeia todo o ensaio: no fim, o que fica da vida — essa que é um permanente “deixar de ser para continuar a ser” — não é a cera que derreteu, mas o que a chama iluminou.
Fique com a introdução desta reflexão inquietante, e luminosa, sobre a existência, intitulada “Tempo é luto”.
INTRODUÇÃO
Tempo é luto
Começa aqui uma viagem sobre o fim, nas múltiplas formas de que ele se reveste e como se impõe. Tudo acaba a todo o instante, ou, como escreveu Wislawa Szymborska, «quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado»; do mesmo modo que existe uma natalidade presente em todas as coisas, um recomeço constante, assim o surgimento de algo novo implica perda, deixar de ser o que era. E, no meio dessa perda, da transformação em nada face ao tudo, para usar a formulação de Pascal, há sempre um nascimento. Essa simultaneidade é inerente a todos os fenómenos. O tempo é luto, pois empurra constantemente com uma mão — para um passado inacessível — tudo o que foi criado, mas é também celebração, na medida em que cria com a outra. Trata-se de dois movimentos, mas apenas na aparência: analisados atentamente, reduzem-se a um fenómeno. Por isso, encontramos sempre uma forma de contradição quando pensamos nesta coreografia de dois rostos: por vezes, a perda imensurável, outras, a surpresa da criação e metamorfose; por vezes, estamos perante o abismo da extinção, outras, a contemplar um campo de girassóis ou a ouvir a voz de Chavela Vargas cantar os dois beijos que leva na alma: «el último de mi madre y el primero que te di». Morte e vida, o último e o primeiro. Se neste livro pretendo falar do fim, dele será sempre indissociável o início. Há ainda uma terceira face, que tantas vezes passa despercebida, porque emerge em diferentes manifestações: a transformação do mundo em narrativa, em representação, em memória, em arte, em algo que, não sendo a própria coisa, é a sua dimensão depurada ou destilada.