Irene Flunser Pimentel - Parte I | Somos Livros Edição Comemorativa

Por: Elísio Borges Maia a 2022-09-14 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa

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“Deixemo-nos de tretas!” Duas ou três ideias sobre... a ilusão da comida saudável

“Quanto mais sabemos acerca de alimentação e de nutrição, pior as pessoas comem.”  Quem o afirma é Conceição Calhau, uma das mais prestigiadas investigadoras do país na área da nutrição e saúde, e autora do livro Deixemo-nos de tretas – A ilusão da comida saudável. Publicado pela Contraponto no passado mês de abril, este livro pioneiro procura desmascarar muitas das teorias que nos são vendidas sobre alimentação saudável e dietas milagrosas. Afinal, será que devemos mesmo comer tudo cozido e grelhado? Existem realmente alimentos “saudáveis”? Terão as calorias assim tanta importância? 

Cinco livros essenciais de Paul Auster

Ícone nova-iorquino, superestrela literária, santo padroeiro da cena literária de Brooklyn… Para várias gerações de leitores, Paul Auster foi isso e muito mais. A sua morte com 77 anos de idade, anunciada no passado dia 30 de abril, fez os cabeçalhos dos jornais do mundo, mas funcionou também como cruel lembrete de como o tempo, tema ao qual dedicou grande parte da sua obra, nem sempre lhe foi favorável. Autor de bestsellers como A Trilogia de Nova Iorque, Palácio da Lua e O Livro das Ilusões, nos quais se debruça de forma recorrente sobre temas como a memória, o envelhecimento, a solidão e a identidade, foi perdendo popularidade perante uma geração entre a qual acredita que: “já ninguém acredita que a poesia (ou a arte) pode mudar o mundo.”

8 curiosidades sobre a língua portuguesa

No dia em que celebramos esta pátria tão mais rica e extensa do que o limite das nossas fronteiras que é a da língua portuguesa, partilhamos consigo oito curiosidades sobre a nossa língua que pode encontrar nos livros Almanaque da Língua Portuguesa e História do Português desde o Big Bang, de Marco Neves.

Embora o Estado Novo se tenha começado a construir durante os anos da ditadura militar — foi neste período que Salazar forjou paulatinamente o entendimento entre as direitas, garantindo que estas não se dividiam mais por questões secundárias, como a forma do futuro regime —, é entre 1932 e 1934 que se ergue o seu edifício institucional. Em 28 de maio de 1932 (6.º aniversário do golpe militar), o Exército ofereceu a Salazar as insígnias da grã-cruz da Torre e Espada. A 5 de julho, este foi empossado como chefe do Governo.

A nova Constituição foi publicada em abril de 1933, após o plebiscito de março. Mantém um catálogo de direitos fundamentais, mas remete para lei especial a regulamentação do exercício dos direitos de liberdade de expressão, de pensamento, de ensino, de associação e de reunião. Neste ano, foi reorganizada a censura prévia (11 de abril), criada a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (29 de agosto), aprovada a legislação básica da organização corporativa com ilegalização dos sindicatos livres (23 de setembro)  e  criado  o  Secretariado  Nacional  de Propaganda (25 de  setembro),  cuja  missão  era tutelar  as artes, os  espetáculos  e  todas  as  formas  de  expressão1.  A primeira parte da nossa conversa centrou-se nas medidas que tinham como objetivo moldar as mentalidades de indivíduos e famílias.


Irene Flunser Pimentel é mestre em História Contemporânea (século xx) e doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Instituto de História Contemporânea (FCSH da UNL), é autora de História das Organizações Femininas do Estado Novo (2000), que obteve o Prémio Carolina Michaëlis em 1999, de Fotobiografia de Manuel Gonçalves Cerejeira (2002), de Judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Em Fuga de Hitler e do Holocausto (2006), Prémio ex-aequo Adérito Sedas Nunes, atribuído pelo Instituto de Ciências Sociais em 2007, de A História da PIDE (2007), que mereceu o Prémio Especial Máxima em 2008, de Tribunais Políticos. Tribunais Militares Especiais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o Estado Novo, em coautoria (2009), de Fotobiografia de José Afonso (2009), de A cada um o seu lugar (2011), que recebeu o Prémio Ensaio 2012 da Máxima, de Salazar, Portugal e o Holocausto, em coautoria (2013) e de Informadores da PIDE. Uma Tragédia Portuguesa (2021).


Elísio Borges Maia: Depois de erguido o edifício institucional do Estado Novo, entre 1932 e 1934, foram tomadas medidas de uma outra natureza que dão significado à expressão de Braga da Cruz: um “Estado com uma doutrina totalitária”. Entre essas medidas, figura a reforma da educação nacional, em 1936 — um ano em que o novo regime se sentiu ameaçado interna e externamente —, levada a cabo pelo ministro António Carneiro Pacheco, que tinha aquela máxima preferida “Um lugar para cada um e cada um no seu lugar”, que inspirou o título de um dos seus livros. Como aí escreveu, pretendia-se que o Estado “substituindo-se à vontade individual e à família, penetrasse na vida privada e transformasse a identidade dos indivíduos” 2. Quais foram os objetivos e as grandes linhas dessa reforma e de que forma esta serviu o que a Irene Pimentel considerou o “propósito totalizante” do Estado Novo?

Irene Flunser Pimentel: Exatamente. Isso é muito importante. Eu considero que, dentro daquela divisão entre Estados totalitários, autoritários — todos eles ditatoriais e todos eles, de certa forma, fazendo parte de uma corrente que na Europa foi ocupando os vários países —, o Estado Novo português é mais de tipo autoritário, sobretudo porque é muito longo. Ele passou por várias fases, mas, na fase de 1935-36, diz-se que há uma tendência para a fascização ou, digamos, para a totalização das almas. Logo em 1935, a função pública e a administração pública foram completamente subordinadas ao regime — só entra na função pública quem vai servir o Estado Novo. Quando se compara o Estado Novo com outras ditaduras, nomeadamente com o nacional-socialismo alemão (com o qual tem bastantes diferenças, mas também algumas semelhanças), há um processo que o nazismo leva a cabo — em alemão, o Gleichschaltung3 — que é, no essencial, proibir tudo, todas as associações, todas as organizações, todas as formas de pensar, e colocar todas essas pessoas em organizações estatais. Houve também essa tentativa no Estado Novo. É o caso das organizações da juventude, para entrarmos agora mais na questão que me colocou. Carneiro Pacheco tem esse propósito totalizante, eu acho que sim. Ele quer regenerar a nação, modificando, portanto, as mentalidades que teriam sido destruídas ou prejudicadas pelo liberalismo, pela Primeira Guerra e pelo republicanismo. É, de facto, isso que ele pretende. Desde logo, acaba, não imediatamente, com as Escolas do Magistério Primário, porque as considerava o alfobre do republicanismo. Estavam, segundo ele, cheias de professores e professoras republicanos. Portanto, há aí um projeto totalizante e isso faz de tal maneira mal à educação que, nos anos 50, não há sequer professores da escola primária porque há uma destruição da sua formação a partir dos anos 30.

 

“[O Estado Novo] passou por várias fases, mas, na fase de 1935-36, diz-se que há uma tendência para a fascização ou, digamos, para a totalização das almas.”

 

 


Cartaz A Lição de Salazar, Secretariado Nacional de Propaganda, 1938.
Fonte: oliveirasalazar.org

 

 

E.B.M.: Tinham sido criadas na Primeira República as (então chamadas) Escolas Normais Primárias 


I.F.P.: Sim, tinham sido criadas na Primeira República. Aliás, o Estado Novo faz algo que nenhum regime, mesmo ditatorial, faz naquela altura: reduzir os quatro anos da escolaridade obrigatória para três anos. É certo que a Primeira República também não o conseguira implementar completamente.


E.B.M.: Por isso, a República criou também as escolas móveis, que tiveram bastante sucesso.


I.F.P.: Exatamente. Voltando ao Carneiro Pacheco, o fecho das Escolas do Magistério Primário e a formação de regentes escolares, que normalmente eram mulheres que tinham acabado de fazer a quarta classe e iam dar aulas às crianças até à terceira classe, foi a forma utilizada para acabar com o republicanismo a prazo, as terríveis mentes republicanas que iam formar os jovens portugueses no liberalismo. Mas ele faz mais: cria (e há aí, também, um propósito totalizante) organizações estatais para arregimentar e enquadrar as mulheres. Primeiro, a Obra das Mães pela Educação Nacional, que não é de caráter obrigatório, depois a Mocidade Portuguesa Feminina, esta sim já de caráter obrigatório e muito parecida com as organizações fascistas italianas e nacional-socialistas. O que se vai interpor entre esse propósito totalizante e os indivíduos é a Igreja Católica, e as famílias, de certa forma. Há aí uma grande diferença no Estado Novo português. A Igreja Católica e as famílias vão continuar a ter, apesar de tudo, o seu espaço de atuação e de liberdade relativa. É nesse período (de 1936 a 1938) que há grandes discussões sobre o propósito totalitário de formar estas organizações estatais, porque já havia as da Igreja Católica, e é muito importante a intervenção do Cardeal Cerejeira, em que ele próprio utiliza o termo “totalitário”, critica o propósito totalitário do Estado Novo, entrando em contradição com Carneiro Pacheco. Isso é muito interessante, sempre com a arbitragem de Salazar, claro, que era, na realidade, quem mandava e quem mantinha aqueles equilíbrios, dizendo por um lado a Cerejeira “Atenção, ao Estado o que é do Estado, a César o que é de César”, mas também a Carneiro Pacheco “Pronto, não acabe completamente com os escuteiros…” Portanto, tentando um entrosamento das várias sensibilidades do Estado Novo, é assim que ele consegue formar um regime novo, ao arbitrar, ao ser o árbitro de todas aquelas sensibilidades da direita.


E.B.M.: Esse é o grande segredo, o equilíbrio como um fim em si mesmo, com as lições do sidonismo presentes...


I.F.P.: Absolutamente! E aí também difere do nacional-socialismo alemão. Foi precisamente num país em que havia enormes associações, uma liberdade de se associar e de pensar de outra forma, de estar englobado em movimentos, que se criou o nacional-socialismo e, portanto, o Estado nacional-socialista. Mas o Estado nacional-socialista sofre permanentemente choques internos, muito mais fortes do que no Estado Novo português. Chega-se a falar até de um “Estado SS”. Em Portugal, não! Não há um Estado da PVDE, é sempre Salazar que mantém o poder, gerindo as várias sensibilidades, e, é de facto, um Estado forte, o Estado Novo português. Mais até do que o nacional-socialista. Só para dar um exemplo: Salazar sabia que são sempre as forças armadas, a nossa história está cheia disso, quem realiza golpes de Estado e modifica regimes. Ele sabe e quando sai da ditadura militar e quer civilizar o regime, vai buscar os militares para dirigir as suas organizações, desde logo a censura e a PVDE, e, desta forma, consegue controlá-los, dando-lhes algumas benesses e algumas tarefas no seio de uma ditadura já civil.


E.B.M.: Permita-me recuar ainda ao tema da educação. Esta reforma educativa procede à simplificação dos próprios programas e a uma instrumentalização da disciplina de História. Para quem hoje vive os dilemas do século XXI, é impor- tante lembrar que estas coisas aconteceram…


I.F.P.: Que havia um livro único, por exemplo.


E.B.M.: Nem mais, o que me leva à questão seguinte: os republicanos entendiam que os súbditos só podiam ser cidadãos por meio da educação. Em 1930, nesta década em que nos encontramos, a taxa de analfabetismo da população maior de 7 anos era aproximadamente de 62%, com uma grande assimetria entre mulheres (quase 70%) e homens (cerca de 53%) e também entre a população mais urbana e a população mais rural, ligada ao setor agrícola — nesta última o analfabetismo, uma década depois, era ainda de 75%...


I.F.P.: Hoje ainda, defensores do Estado Novo, muitas vezes por ignorância, difundem a ideia de que Salazar diminuiu o analfabetismo, que introduziu os três anos de escolaridade, quando não dizem quatro anos, quando, na verdade, ele os reduziu, de quatro para três. Depois, o Estado Novo tem uma enorme duração e, evidentemente, nos anos 60, o analfabetismo era menor do que nos anos 30, mas sempre muito superior ao da média europeia.


E.B.M.: Quando olhamos em detalhe para a abordagem do Estado Novo ao analfabetismo compreendemos que ler e escrever era apenas o meio para compreender determinadas coisas, não é verdade? Não para pensar pela própria cabeça…


I.F.P.: Exatamente: reduzir o analfabetismo apenas ao ponto de se saber fazer determinadas contas, ler e escrever o mínimo, até para se poder seguir a ideologia do Estado Novo… O que vinha no livro único, aquelas imagens… não é por acaso, é mesmo para analfabetos. Cheio de imagens que apresentam Portugal como se fosse o país mais maravilhoso do mundo, não é verdade?
 

“O que se vai interpor entre esse propósito totalizante e os indivíduos é a Igreja Católica, e as famílias, de certa forma, aí há uma grande diferença no Estado Novo português. A Igreja Católica e as famílias vão continuar a ter, apesar de tudo, o seu espaço de atuação e de liberdade relativa.”

 

E.B.M.: Conhecemos, de resto, os elogios que os ideólogos do nacionalismo dirigiam ao mundo rural; aí é que estava o Portugal autêntico e o caminho para o reaportuguesamento (uma ideia formulada pelo poeta Afonso Lopes Vieira)…


I.F.P.: Esse reaportuguesamento é uma das formas do nacionalismo português e é o reaportuguesamento rural. Não é por acaso que o Secretário da Propaganda Nacional, de António Ferro, também leva isso avante, esse elogio à ruralização para travar o desenvolvimento, a industrialização, com a formação de uma classe operária moderna, sen- sível às ideias de esquerda, para não falar do comunismo.


E.B.M.: No fundo, um ataque à cidade…


I.F.P.: Sim, e um ataque à cidade, porquê? Porque Salazar odiava os grandes falanstérios, as grandes creches, as grandes fábricas onde os operários se juntavam, faziam greve, se revoltavam contra o Estado… ele quer eliminar isso tudo.


E.B.M.: Falemos então das organizações femininas criadas pelo Estado Novo.


I.F.P.: Temos a Mocidade Portuguesa Feminina a partir de 1937, aquela que eu estudei melhor. Antes, em 1936, há a formação da Obra das Mães pela Educação Nacional, da organização da juventude masculina (Mocidade Portuguesa) e de uma milícia paramilitar, a Legião Portuguesa, que também é importante. Inicialmente, seria uma espécie de serviço de segurança paramilitar que defenderia o regime, embora com o tempo acabe por se transformar numa organização essencialmente burocrática para escolher as pessoas que, na função pública, iriam subir na hierarquia. Tudo isso vai-se modificando muito e as Mocidades masculina e feminina também. Em Portugal, havia muita pobreza e muito poucas escolas. Inicialmente, pretendia-se que a Mocidade Portuguesa estivesse presente no meio rural, mas abandonaram completamente essa ideia e recolocaram essas organizações na escola (na escola primária e na escola técnica e liceal). E aí a frequência era obrigatória, mas como não havia instrutores suficientes, muitas escolas não tinham a organização que deveria ser obrigatória… a Mocidade.


E.B.M.: Ao contrário da Mocidade Portuguesa Feminina, a Obra das Mães [pela Educação Nacional] não era obrigatória…


I.F.P.: Aí também tem que ver com a ideologia. Segundo o Código Civil (de 1867, vigente no Estado Novo), o homem é o chefe de família no lar conjugal, logo não se podia obrigar as senhoras, as mães e as mulheres desses chefes de família a obedecer em primeiro lugar ao Estado… Por isso não era obrigatória. O Carneiro Pacheco — ele é, digamos, um bom ideólogo — explica muito bem isso. A Obra das Mães pretende reeducar as mulheres portuguesas para serem mães e esposas. E também dar-lhes algumas técnicas – por exemplo, os partos ocorriam em casa, não havia médicos, não havia nada disso, portanto, recebiam formação nos primeiros cuidados a ter com os bebés. Já sobre os jovens, Carneiro Pacheco dizia: “têm de ser educados". Porque nas suas famílias, que têm de ser reeducadas, vai demorar tempo até poderem educar os filhos. O Estado tomava a tarefa a seu cargo, enquanto as famílias não estivessem suficientemente reeducadas.


E.B.M.: Um dos aspetos que a Irene Pimentel destaca como diferenciador destas organizações femininas é o facto de terem sido entregues às mulheres e não a homens.

 

“Carneiro Pacheco também quis impedir que as professoras do liceu, onde havia mais rapazes, continuassem a lecionar. Isso também aconteceu. Deixaram de ser professoras e foram substituídas por homens.”


 


Cartaz de Propaganda ao Estado Novo

 

I.F.P.: É verdade, é diferente, por exemplo, do nacional-socialismo alemão. Essas organizações femininas, também as houve, de jovens e de mães e mulheres já adultas, estavam sempre organizadas por mulheres, mas debaixo da alçada e da direção máxima da Juventude Hitleriana, que era dirigida por homens nazis. Aqui não! É outra manifestação da tal frase “a cada um o seu lugar e cada um no seu lugar”: funções diferentes para homens e mulheres. O mesmo Carneiro Pacheco também quis impedir que as professoras do liceu, onde havia mais rapazes, continuassem a lecionar. Isso também aconteceu. Deixaram de ser professoras e foram substituídas por homens.
 

E.B.M.: Outro exemplo é o fim das escolas mistas…


I.F.P.: O fim das escolas mistas também tem esse propósito, cada um no seu lugar. Claro que isso só acontece em 1949 verdadeiramente, porque antes não tinham escolas suficientes. Cada um no seu lugar, cada um com a sua função, as mulheres no lar a educar, esposas dos seus maridos, eles, teoricamente, a ganharem o salário. Tanto que houve um propósito inicial, antes de o abono de família ser criado em 1942, de criar um salário familiar. O homem é que ia ganhar a vida fora de casa e o que recebia devia ser suficiente para toda a família.
 


Boletim Mocidade Portuguesa Feminina, N.º 21, janeiro de 1941. Fonte: BLX-Hemeroteca Municipal de Lisboa

 


Cartaz de Propagada do Estado Novo. Fonte: Ephemera

 


Capa do Diário de Notícias, 9 de maio de 1940.

 

Claro que era completamente absurdo porque os salários eram de tal maneira baixos que homens, mulheres, crianças, velhos… todos trabalhavam. É outra das grandes mitologias Salazar queria que as mulheres retornassem ao lar, mas, na prática, isso nunca aconteceu, aliás a Maria Lamas…


E.B.M.: Na obra As mulheres do meu país4...


I.F.P.: Escreve isso, mostra que não aconteceu. Há uma minoria de mulheres da média e alta burguesia que, de facto, não trabalhava, que tinha as suas empregadas — na altura, dizia-se criadas. Agora, as restantes, mesmo na pequena burguesia, todas trabalhavam.


E.B.M.: Ao valorizar o papel da mulher no seio da família — que era, no fundo, o núcleo primário do Estado Novo —, de educadora dos filhos e colaboradora do marido, o regime parecia, a frase é sua, “estar a valorizar as mulheres e a atribuir-lhes uma cidadania social”.
 

I.F.P.: Absolutamente. Parecia.


E.B.M.: E se a Constituição de 1933, precisamente quando enuncia o princípio da igualdade perante a lei, ressalva, “quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”, há, na verdade, uma certa ambivalência e uma das suas manifestações é a atribuição às mulheres “chefes de família”, ainda em 1931, de um direito de voto limitado, estendido depois em 1933 às solteiras maiores e emancipadas, com família própria e reconhecida idoneidade moral e às mulheres emancipadas com curso secundário e superior. Na mesma altura, ganham capacidade eletiva e vamos ter as três primeiras deputadas mulheres. Como é que evoluiu a situação da mulher nestes primeiros anos de implantação do regime?


I.F.P.: A situação das mulheres é marcada pelo Código Civil: o homem é o chefe de família. A mulher não era uma colaboradora do marido… Não, ela devia obediência e tinha as suas funções. Salazar ideologizou o que se passava na Europa, uma Europa marcada pelo cristianismo. Mas essa tentativa de valorizar a mulher — e Salazar sublinha várias vezes que as mulheres têm o seu lugar e é fundamental a sua tarefa — teve alguns elogios, algumas estudiosas chamam-lhe até “feminismo maternalista”… Ao longo do século XX, a situação das mulheres é praticamente a mesma que existia desde o final da monarquia, apesar de algumas leis durante o republicanismo a terem modificado, desde logo as Leis do Divórcio e da Família [de 1910]. Salazar vai continuar o que a ditadura militar tinha iniciado, ao atribuir o voto às mulheres nas eleições para as Juntas de Freguesia, e porquê? Porque estava convicto que as mulheres o apoiariam sempre, até no seio do lar. Em certa contradição com o Código Civil (se elas deviam obediência aos maridos, deviam também obediência ao que eles pensavam…), Salazar estava convicto que elas poderiam ter uma influência nos maridos, nas suas atitudes republicanistas, liberais. Tudo isso ao nível de uma pequena e média burguesia, não do grosso da população. Depois, temos o retrocesso na questão do divórcio…


E.B.M.: Com a Concordata de 1940 [entre Portugal e a Santa Sé], os casados segundo a fé católica deixam de poder divorciar-se. E surge o problema dos filhos ilegítimos porque não podia haver divórcio…


I.F.P.: Isso era terrível, não por acaso a primeira grande manifestação a seguir ao 25 de Abril (as pessoas esquecem-se um pouco) foi a manifestação a favor do divórcio. Foi no Pavilhão dos Desportos e é uma manifestação muito interessante porque só se veem homens e escolhem uma mulher para ser a grande oradora. E essa mulher, quando fala do divórcio, fala sobretudo nos filhos ilegítimos, o horror que era haver filhos ilegítimos. Estes não tinham o mínimo de garantias, de direitos, nada! Será uma das primeiras leis do Salgado Zenha, que era o Ministro da Justiça, mas aqui já estou depois do 25 de Abril. Negociar a Concordata, mas também acabar com a figura do filho ilegítimo.


E.B.M.: As mulheres precisavam também da autorização do marido para trabalhar, não é verdade?


I.F.P.: Eu, por exemplo, se vivesse naquele período tinha de perguntar ao meu marido se ele estava de acordo com os livros que eu fazia e ele tinha de dar autorização para eu receber os direitos de autor. Fala-se também muito na autorização dos maridos para a mulher sair do país — e existia, para mulher e filhos. Tinha de ser o chefe da família a permitir, só que a partir dos anos 60, sem nunca modificar a lei, passa a não ser possível observar esta regra por causa da emigração...


E.B.M.: Os maridos não estavam cá.


I.F.P.: Estavam na emigração. E aí o Marcello Caetano acaba com isso, ainda antes do 25 de Abril, curiosamente.


E.B.M.: Na mesma altura há mudanças no Código do Trabalho...


I.F.P.: Há, sim, porque, entretanto, as mulheres estavam no mercado de trabalho. Eu não quero muito entrar no marcelismo, mas, por exemplo, a Maria de Lourdes Pintasilgo é convocada por Marcello Caetano para fazer um estudo sobre a situação das mulheres em Portugal. Ela era uma feminista, o estudo vai servir para a Comissão da Condição Feminina formada por ela já depois do 25 de Abril. Estávamos num período em que havia emigração, guerra colonial, em

 

“Não é por acaso que a primeira grande manifestação a seguir ao 25 de Abril foi a manifestação a favor do divórcio.”

 

que as mulheres passaram a ser também necessárias nas indústrias, no campo… É também nos anos 60 que vemos tantas raparigas como rapazes no liceu. A sociedade adquire uma dinâmica própria, as famílias querem que as raparigas estudem mais. Nos anos 50, os ministros de Salazar ainda encaram o liceu apenas como formação das futuras elites, preparação para a universidade, onde só uma minoria entrava, e quase toda masculina. Era condição para se entrar na universidade, por isso era só para alguns. Para o resto das pessoas havia as escolas técnicas, comerciais, industriais. Agora as próprias famílias não, não querem isso.


E.B.M.: A realidade foi-se impondo, no fundo.


I.F.P.: Foi-se impondo, isso mesmo! Aliás, o que é a emigração? A emigração, como muitos dizem, é uma forma de votar com os pés. Eu acho muito interessante porque, de facto, se vai a salto para outra realidade, em que há democracia, em que se trabalha e há direitos, greve, sindicatos.


E.B.M.: Na família da minha mãe, cinco dos seus seis irmãos emigraram para França nesse período…


I.F.P.: É terrível. As pessoas não têm noção do que foram os anos 60. Há um colega meu, o Victor Pereira, que tem um trabalho muito interessante sobre emigração. Ele explica — e eu acho que ele tem toda a razão — que também há um contributo da emigração relativamente ao 25 de Abril. Porque muitos voltavam. Especialmente no marcelismo (porque o marcelismo legalizou muita da emigração clandestina), as pessoas vêm nas férias e explicam o tipo de realidade que havia nos seus países, com direitos, aumentos de salários e, portanto, isso tam- bém contribuiu para…


E.B.M.: Que as pessoas percebessem que havia uma outra realidade.


I.F.P.: A realidade que o Estado queria abafar! A partir dos anos 60, é impossível abafar essa outra realidade, isso também explica, no 25 de Abril, para surpresa dos próprios militares que o fizeram, o facto de as pessoas virem para a rua e aplaudirem.
 

“A emigração, como muitos dizem, é uma forma de votar com os pés. Eu acho muito interessante porque, de facto, se vai a salto para outra realidade, em que há democracia, em que se trabalha e há direitos, greve, sindicatos.”

 

Leia a versão integral da Revista Somos Livros Edição Comemorativa aqui (página 100).

Leia a Parte II desta conversa aqui.


1 Este é o último dos quatro momentos com que Fernando Rosas delimita a ascensão de Salazar e do salazarismo: i) 1926-1928 – o lançamento do “mago das finanças”; ii) 1928-1930 – o combate vitorioso contra o republicanismo conservador; iii) 1930-1932 — a clarificação política; iv) 1932-1934 — a institucionalização do regime (ROSAS, Fernando (1994), O Estado Novo, in História de Portugal, MATTOSO, José (dir.) José Mattoso, volume VII, Círculo de Leitores, Lisboa, pág. 205 e seg.. Para a durabilidade do regime foi também muito importante o reforço do controlo político sobre as Forças Armadas com as reformas de 1937 e 1938 (Salazar assumiu a pasta dos negócios estrangeiros e da guerra em 1936).
2 PIMENTEL, Irene Flunser (2011), A cada um o seu lugar — a política feminina do Estado Novo, Temas e Debates, Lisboa, p. 413.
3 Nazificação ou estabelecimento do controlo total da sociedade.
4 LAMAS, Maria; CARLOS, Fernando (ilustrador), (1948-1950), As Mulheres do meu país, Actuális, Lisboa. Maria Lamas, que presidiu ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas entre 1945 e 1947 (ano em que foi decretado, pelo Governador Civil de Lisboa, o encerramento coercivo da sua sede que visava, sobretudo, atingir a sua presidente), publicou a obra em fascículos, entre maio de 1948 e maio de 1950, como estratégia para tentar escapar à censura. Denunciou a falta de condições de habitabilidade, o analfabetismo e a dura realidade das mulheres portuguesas, desmentindo a propaganda do Estado Novo.
 


 

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