Bábi Iar: uma obra-prima sem cortes pela primeira vez publicada em Portugal
Por: Bertrand Livreiros a 2022-11-28
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Com apenas 14 anos, o ucraniano Anatóli Kuznetsov começou a registar o massacre Bábi Iar, que testemunhara em setembro de 1941, quando morreram numa ravina de Kiev milhares de judeus. Em plena Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o jovem que se tornaria escritor viu as tropas nazis conquistarem Kiev, assistiu às divisões que se geraram no seu país e até mesmo no seio da sua própria família, enquanto começava a suspeitar que aquele território estava, afinal, a ser palco de um crime terrível.
É este o pano de fundo para um retrato trágico, infelizmente real, daquele que foi um dos maiores massacres de judeus da União Soviética pelas mãos das tropas alemãs durante o conflito bélico. Ao longo de dias os disparos não cessaram, as valas comuns eram abertas, o fumo tomava conta dos céus, e os judeus, os ciganos e quaisquer opositores às regras alemãs desapareciam das ruas. E foi através da memória que Kuznetsov decidiu dar conta deste acontecimento, no qual se estima que mais de cem mil pessoas tenham sido mortas, às portas da capital ucraniana.
Sem a distância ou a veracidade das informações, a obra dá conta de como os nativos acreditavam até dada altura na benevolência das tropas alemãs, num território onde também crescia o ódio ao regime soviético, pela fome e a falta de condições de vida. Ansiava-se pela libertação, ao mesmo tempo que o desenrolar do conflito conduzia a extremos perpetrados em nome da ideologia e da dominação. A violência rapidamente desfez a esperança, algo que o romance agora reeditado em Portugal dá a conhecer de forma ímpar e de forma totalmente completa.
Em 1961, Kuznetsov submeteu o seu testemunho deste período às autoridades soviéticas e, em 1966, saiu por fim em livro, numa versão fortemente truncada. Apenas após a fuga do autor para Inglaterra, em 1969, seria revelado o texto completo — e é esse que agora, pela primeira vez, se dá a ler no nosso país. Trata-se, como diz o seu próprio autor, de um documento em forma de romance, retrato da brutalidade da guerra vista pelos olhos de uma criança e uma lição sobre o poder da censura.
De forma a permitir aos leitores identificar as diferenças entre versões, na presente edição são destacadas a negrito as passagens que foram acrescentadas ou significativamente alteradas. É o caso do prefácio, assinado pelo autor, onde conta que quando apresentou o manuscrito original a uma revista de Moscovo, ele foi-lhe devolvido imediatamente com a advertência de o não mostrar a ninguém até ter removido toda «a tralha antissoviética» que continha.
«Aqui está, finalmente, o que realmente escrevi», desabafa o autor falecido em 1979. Considerado um dos mais importantes testemunhos sobre a ocupação nazi de território soviético, Bábi Iar — que conta com introdução da historiadora Irene Flunser Pimentel — permite um olhar sobre a história da Ucrânia particularmente relevante para a leitura dos acontecimentos recentes na Europa.