“Lisboa Cliché” | Da beleza do erro e da inutilidade de todos os dias

Por: Beatriz Sertório a 2021-10-11 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa

Daniel Blaufuks

Daniel Blaufuks

Daniel Blaufuks nasceu em Lisboa em 1963, numa família de refugiados judeus alemães. A sua formação dividiu-se entre a AR.CO, Lisboa, o Royal College of Arts, Londres, e a Watermill Foundation, Nova Iorque. Fotógrafo, cineasta e artista plástico, tem trabalhado na relação entre fotografia e literatura, através de obras como My Tangier, com o escritor Paul Bowles. Mais recentemente, Collected Short Stories apresentou vários dípticos fotográficos, numa espécie de «prosa de instantâneos». A relação entre o público e o privado, a memória individual e a memória coletiva tem sido, aliás, uma das constantes interrogações no seu trabalho. Utiliza principalmente a fotografia e o vídeo, apresentando o resultado através de livros, instalações e filmes. O documentário «Sob Céus Estranhos» tem sido apresentado regularmente por todo o mundo, nomeadamente no PhotoEspaña (Madrid), onde o livro «Sob Céus Estranhos» recebeu o prémio de melhor edição internacional do ano de 2007. Neste mesmo ano foi galardoado com o Prémio BES Photo. É diretor de imagem da revista literária Granta em Língua Portuguesa, responsável pela escolha dos fotógrafos de cada nova edição.

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O escritor Miguel Torga era da opinião que “a vida afetiva é a única que vale a pena. A outra apenas serve para organizar na consciência o processo da inutilidade de tudo.” Certamente, o mesmo é verdade no que diz respeito à construção das nossas memórias. A memória pública, construída a partir daquilo que absorvemos na escola, nos meios de comunicação ou nos manuais de História, ajuda-nos a ordenar o nosso pensamento acerca daquilo que conhecemos. Mas é a partir da nossa memória pessoal, dos afetos, que construímos aquilo que somos.

Esta relação entre a memória privada e a memória pública é uma constante no trabalho do autor e artista visual Daniel Blaufuks. Autor de Não Pai, um livro sobre o pai que não foi senão ausência, assina agora um novo livro publicado pela Tinta da China, intitulado Lisboa Cliché (disponível em pré-venda).


 

"Novo lugar não vais achar, nem achar novos mares.
Vai-te seguir esta cidade. Ruas vais percorrer,
serão as mesmas, e nos mesmos bairros hás-de viver,
nas mesmas casas ficará de neve o teu cabelo.
Hás-de ir ter sempre ao mesmo sítio, sem qualquer apelo.
Para outro lugar não há navio ou caminho
e estragares a vida tu neste cantinho
é pois igual a nesse largo mundo a dissipares."


A Cidade, de Constantinos Kavafis

 

Aliando, mais uma vez, uma narrativa intimista à arte da fotografia, em Lisboa Cliché, Blaufuks pinta um retrato a preto e branco de Lisboa nos anos 80. Nesta altura, a grande capital parecia infimamente mais pequena. Os taxistas conheciam-na como a palma da sua mão, e as pessoas encontravam-se, facilmente, na rua, mesmo sem o auxílio de uma cabine telefónica.  Ao mesmo tempo, a cidade era "enorme", com pretensões de rivalizar com Paris ou Nova Iorque. Era a Lisboa da vida noturna no mítico Frágil, dos grandes cinemas históricos, das bandas de rock que brilhavam no semanário Blitz, e de todos os grandes escritores com que o autor conviveu, desde Natália Correia a Ruy Belo ou Al Berto...

Mas era, simultaneamente, uma cidade em processo de transformação. Lisboa do cinema Condes que se transformou no internacional Hard Rock, da Pastelaria Colombo que deu lugar ao primeiro McDonald’s na capital, do incêndio nos Armazéns do Chiado que veio expor a decadência para a qual a cidade caminhava, dos turistas que vieram para ficar, e do preço do café que triplicou... Uma Lisboa que afastou os lisboetas e que da pretensão a "grande metrópole" passou a uma “quase Feira Popular” (Daniel Blaufuks in Lisboa Cliché).

 

 

Mas é pelas ruas de uma Lisboa mais pessoal e íntima que Daniel Blaufuks nos leva a passear, fruto de um retrato analógico no qual existe ainda margem para a mentira e para o erro - ou, como o autor o designa, a “sombra do erro”; algo que, segundo afirma, não pode existir na fotografia digital, pois “o digital existe ou não existe, não tem intermédio, nem sombra, nem erro.”  

Não permitir o erro pode ser considerado uma melhoria técnica, mas também (e na perspetiva de Blaufuks, com certeza, o é), uma perda. Uma fotografia que resulta de um acidente pode revelar coisas que nem sabíamos existir; beleza que, de outra forma, passaria despercebida. O erro, o acidente e o vazio dão lugar à imaginação - à possibilidade de manipular a realidade de todos os dias de modo a criar algo inteiramente novo.

É, portanto, a partir do espaço íntimo entre a falibilidade da memória, o acaso do erro, e a beleza que pode surgir do encontro entre ambos, que se constrói este Lisboa Cliché. Um livro que retrata uma Lisboa que já não o é, porque desde que foram capturadas as fotografias que compõem este livro volveram cerca de quarenta anos, mas também uma Lisboa que já não o é porque o próprio autor já não é quem foi. Nele, grandes acontecimentos históricos, como o incêndio de 1988, servem apenas de cenário às inutilidades de cada dia - às madrugadas desperdiçadas a observar a neblina levantar-se das águas do rio Tejo, depois de noites “esbanjadas” em paixões intensas, por pessoas, histórias, lugares, poemas e coisas belas. Porque, afinal, “o que é a vida senão uma bela sucessão de dias inúteis” (Daniel Blaufuks in Lisboa Cliché)

 

"E assim, em vez de escolhermos dissipar a vida lá fora, preferimos esbanjá-la aqui em Lisboa. Esbanjávamos a vida indo ver filmes, vendo espectáculos, lendo livros, apaixonando-nos por pessoas, ruas, casas, árvores, poemas, automóveis, praias, escritores, actores, filmes e sei lá mais o quê, se é para esbanjar, é para esbanjar a sério."

Daniel Blaufuks in Lisboa Cliché

 

Esbanjemos então, enquanto por cá andamos.

Enquanto não vivermos apenas em fotografias de um mundo que foi e já não é mais.

 

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