"Integrado Marginal" | O custo humano da exatidão
Por: Marisa Sousa a 2021-07-15
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"Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo. (…) É, considero aqui, um ofício delicado contar o tempo vencido."
— José Cardoso Pires, O Delfim
Bruno Vieira Amaral assumiu o ofício delicado de contar a vida do “menos nostálgico dos grandes escritores”. Integrado Marginal, que demorou três anos a apurar, é o terceiro volume da coleção de grandes biografias da cultura contemporânea, um dos mais ambiciosos projetos editoriais da Contraponto. Estas seiscentas páginas, sobre a vida e obra do “maior escritor da segunda metade do século XX”, trazem dentro um pedaço imenso de pátria e a essência de um homem que nunca desistiu dela e do ofício da escrita.
Do mergulho na vida de Cardoso Pires — o homem que tinha medo de ficar na História como “um fulano que escreve bem” —, Bruno Vieira Amaral destaca alguns dos episódios que mais o surpreenderam: a viagem marítima que aquele fez, em 1945, que acabaria por levá-lo a Moçambique e que teve uma importância extraordinária no apuramento da sua sensibilidade enquanto escritor; a relação de amizade que manteve com alguém que ele viria a descobrir ser um informador da PIDE; e “no geral, a forma como ele conseguiu manter uma independência literária e de espírito, nunca deixando de estar no centro da literatura portuguesa da época em que viveu.”
Partimos dos instantes primeiros e, com o tempo necessário que uma vida como a de Cardoso Pires exige, assistimos ao processo de construção do homem e do escritor, como se de uma escultura, que vai tomando forma diante dos nossos olhos, se tratasse. A exigência obsessiva e quase doentia do biografado sempre como linha vincada no horizonte do leitor. Os adjetivos adultos, alinhados no tempo certo: notívago, boémio, brigão, obcecado, um espírito insubmisso. Está lá tudo, para que não o esqueçamos. Os pais, a escola, a descoberta dos livros, a persistência, os ódios, o casamento, as primeiras vezes e os últimos momentos. “O que digo é que não quero ser humilhado, ficar gagá. Tenham respeito, tratem-me bem”, terá dito Cardoso Pires perto do fim. Seja feita a sua vontade. A memória é, tantas vezes, o melhor tributo.
”(…) nunca cultivei qualquer espírito de grupo. Quando muito, talvez nunca tenha passado em toda a minha vida de um integrado marginal ou coisa que se pareça… (…)”
— José Cardoso Pires