Bruno Vieira Amaral: "A beleza da literatura é entrar num mundo que não é o nosso"
Por: Marta Martins Silva a 2024-11-22
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No teu primeiro livro, As Primeiras Coisas, foste buscar muito do bairro onde nasceste, Vale da Amoreira, no Barreiro, e das pessoas com quem te cruzaste ao longo da infância e adolescência. O que tem de ti este toda a gente tem um plano?
Todos os livros têm tudo de mim. O que este tem comum com os outros é a observação. Na génese de todos os meus livros, está o interesse pelos outros, a capacidade e interesse em ver os outros, em olhar profundamente para os outros e interessar-me pelas histórias dos outros. Eu não acho que o ponto de partida seja sempre um sentimento benigno, por vezes, é algo até parasitário, parte quase sempre de uma necessidade egoísta. Mas, ao mesmo tempo, pela atenção que dedicamos ao outro e que é necessária para criar as personagens, acaba por ser colateralmente um ato de amor… ou pelo menos de atenção.
E achas que ao conheceres os outros te conheces também a ti, ou não é por aí?
Eu creio que o olhar que o escritor lança sobre os outros é sempre o seu olhar, diz sempre muito sobre ele. Por isso é que se costuma dizer que o escritor está sempre a escrever o mesmo livro, não podemos fugir de quem somos, podemos escolher e criar personagens que até são muito diferentes de nós, mas, até nessa escolha, nessa forma de olhar para as personagens, naquilo em que se repara, naquilo a que se presta atenção, há muito da pessoa, mais do que do escritor. Não sei se me conheço melhor a mim escrevendo sobre os outros, sei que me revelo mais a mim escrevendo sobre eles porque não posso fugir do meu olhar, da minha perspetiva.
A questão da observação está presente no teu dia a dia?
Há momentos em que estou muito mais alerta e muito mais ligado aos outros e há momentos em que não estou. E há coisas a que na altura não prestamos muita atenção e que depois nos lembramos mais tarde, e que vamos buscar no processo de escrita para construir determinada personagem, como se estivéssemos permanentemente a construir um arquivo mesmo que não seja deliberado.
Falas das personagens. É fácil despedires-te delas ou libertas-te facilmente?
É difícil. E neste toda a gente tem um plano, talvez mais do que em qualquer outro livro antes, aconteceu-me ter essa ligação muito forte com o protagonista, de ter inicialmente a intenção de que lhe acontecessem certas coisas que acabaram por não acontecer.
(...) eu procuro a verdade, mesmo nos livros de ficção.
Porque o plano não se concretizou…
Lá está, havia um plano, mas, depois, a realidade dentro da ficção que estamos a construir põe-nos uma série de problemas e damos por nós a pensar se, ao escrever isto ou aquilo sobre a personagem, estamos a ser leais à personagem. Eu não gosto nada daquela ideia de que as personagens é que dizem o que vão fazer, acho uma coisa meio esotérica… porque eu é que estou a dominar. Mas, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da personagem pede certas coisas, existe o dilema de se perceber o que é que está de acordo com a verdade da personagem. Nós próprios, os escritores, vamos descobrindo a verdade daquela personagem à medida que a vamos escrevendo. E há caminhos pelos quais não podemos seguir caso contrário estamos a trair a personagem, estamos a trair a verdade e eu procuro a verdade, mesmo nos livros de ficção. Ou, se calhar, até sobretudo nos livros de ficção.
Quando termina, o livro já é dos leitores e aí já não controlas.
Já não posso fazer mais nada. Às vezes, o leitor pergunta: "porque não aconteceu isto ou aquilo, o que acontece àquela personagem?" Às vezes, eu não sei o que acontece a determinada personagem. Porque aquela personagem está lá para isso, para não se saber aquilo que lhe acontece. Dar demasiadas respostas é outra questão, a vida não é assim e eu quero que os meus livros estejam próximos da vida. Há pessoas que desaparecem das nossas vidas e nunca saberemos o que lhes aconteceu, e nos romances também deve ser assim, para se criar essa proximidade com a vida. Nós não sabemos tudo e esse desconhecimento, essa ignorância, faz parte do mistério da vida.
Escrever é catártico ou isso é romantizar a literatura?
Pode ter esse efeito quase terapêutico, mas é também doloroso e, por isso, também será catártico, se não fosse doloroso, também não seria. Por vezes, tem de se remexer em coisas que doem e que nem têm de estar diretamente ligados a coisas que nos aconteceram, mas a coisas que nos lembramos, e escavar essas memórias, por vezes, é doloroso. Mas também acho que só vale a pena escrever se for para ir aos sítios onde dói. Se ficarmos sempre com uma distância de segurança para as coisas, não creio que possamos dizer nada que seja relevante. Temos de ir onde dói.
E, se calhar, só assim é que se chega aos leitores.
Acho que, do ponto de vista social e geográfico, sou um romancista limitado, mas procuro compensar essa proximidade espacial, geográfica, social, com profundidade, ir ao fundo daquelas personagens e daquelas situações. E depois, poderá ter esse efeito, ainda que o que está sempre presente para mim é a forma como eu transformo aquilo que são muitas vezes lembranças e circunstâncias pessoais em matéria literária que possa interessar a outras pessoas que não eu próprio. Se fosse uma coisa meramente pessoal num sentido catártico, terapêutico, aquilo só teria interesse para mim e eu quero que tenha interesse para mim, mas que sinta que, quanto mais fundo vou dentro de mim, mais isso pode interessar aos outros. Se ficar à superfície, pouco interesse terá para os outros.
Achas que as pessoas se vão identificar com a tua personagem principal, sendo ela tão… especial?
Não sei se se vão identificar no sentido de pensar que aquilo que lhe acontece também lhes podia ter acontecido, mas essa também é a beleza da literatura, a de entrarmos num mundo que não é o nosso, em situações que não vivemos. Duvido que os leitores se identifiquem no sentido de: "isto podia ser eu", mas fora das questões mais concretas da personagem: do que fazia e de qual era o trabalho dela, haverá sentimentos, ideias, pensamentos que eu acho que são comuns, independentemente das nossas experiências. Todos nós quando chegamos a uma determinada altura da nossa vida, fazemos esse balanço: "a vida é isto?", "Ainda tenho alguma coisa além disto?", "O que é que eu consegui até aqui?", "O que posso conseguir a partir daqui?".
(...) só vale a pena escrever se for para ir aos sítios onde dói.(...) tu defines-te mais pela forma como reages às coisas que te acontecem do que aos teus magníficos planos.
E uma das ideias centrais é explorar esta questão de que toda a gente tem um plano, mas isso não quer dizer nada porque depois as coisas podem alterar-se?
É por aí. Isso parte de uma frase do Mike Tyson [ex-pugilista norte-americano] que normalmente ganhava os combates por knock out [golpe decisivo que põe fora de combate] muito rapidamente. E perguntaram-lhe uma vez o que ele achava dos planos dos adversários para conseguir escapar a isso e ele dizia: “Toda a gente tem um plano, até levar com um murro nos dentes” [risos].
No fundo, isto serve a tudo…
Isto é filosofia de vida. Independentemente dos teus planos, há um momento em que levas um murro nos dentes e os teus planos passam para segundo plano. Às vezes, tens de te deixar ir porque, se calhar, chegas a sítios melhores do que aqueles onde o teu plano te conduziria. Não dá para controlar tudo. E a história desta personagem é a de alguém que vai sendo arrastado pela vida e até que, mais do que um plano, ele tem um objetivo, mas tanto vale ter como não ter, é praticamente indiferente. Há coisas que te acontecem e, se calhar, tu defines-te mais pela forma como reages às coisas que te acontecem do que aos teus magníficos planos.
É fácil perceberes que um livro está terminado?
Este foi o livro que eu mais gostei de acabar. Nos outros, havia o domínio, o processo era demasiado consciente de construir o fim, e eu, neste livro, estava a escrever e ainda tinha umas ideias, iam acontecer outras coisas à personagem e eu estava a escrever o capítulo com que o livro termina e acabei um parágrafo e a sensação foi de "acabou, chegou ao fim". Foi uma sensação de… e raramente senti isto… de "não inventes mais". Aquele momento foi quase uma despedida. A escrita tem momentos muito difíceis, de as coisas não estarem como nós queremos, e, depois, há outros momentos em que tu dizes: "é para isto que eu escrevo". Esses momentos em que aquilo deixa de ser completamente racional. Tu estás a escrever e percebes "a resposta está aqui, está nas palavras, não está no que eu idealizei".
Como é o teu processo de escrita? Tens rituais?
Gosto muito de escrever à mão, é talvez nos momentos em que a coisa está difícil que escrevo à mão, quando não está a sair ou alguma coisa não está a funcionar, fecho o computador, pego no caderno e funciono. Quase todo este livro foi escrito à mão.
Precisas de fazer o luto de um livro antes de começar o seguinte?
Não tenho tempo [risos]. Eu estive nos últimos tempos a escrever muito intensamente e redescobri coisas que tendemos a esquecer: um livro escreve-se escrevendo, e eu gosto de estar naquele momento da escrita, com toda a dor que isso implica. Há escritores que dizem que é só angústia, outros dizem que é só prazer, às vezes, é muito frustrante mesmo, e eu torno-me impossível quando estou a escrever, mas, quando é bom, há coisas que são extraordinárias. E como vinha com balanço deste, resolvi saltar já para o próximo, que é uma ideia que tinha há muito tempo e que tenho estado constantemente à procura do momento certo. A experiência de escrever este livro agora mostrou-me que não há o momento certo, é escrever, tentando, experimentando, até apanhares o ritmo daquele livro. Nem sempre é fácil, mas, quando a melodia se começa a formar na tua cabeça, descobres o entusiasmo, e esse entusiasmo só aparece estando a escrever.
Se aos 12 anos não tivesse aberto a primeira biblioteca no Vale da Amoreira, que hoje tem o teu nome, serias uma pessoa diferente?
Seria diferente, claro. Fez diferença no meu trajeto intelectual. O interesse pelos livros existia, não existia era o acesso aos livros, à imprensa. Provavelmente, teria lá chegado mais tarde. E isso vê-se noutras coisas: se eu não tivesse tido certos professores, a minha vida teria sido diferente. E esse é o papel, quer da escola pública, quer das bibliotecas públicas: fazer com que crianças que têm esse interesse tenham acesso. Não há nada mais triste do que teres fome intelectual e não teres um alimento.
(...) um livro escreve-se escrevendo, e eu gosto de estar naquele momento da escrita, com toda a dor que isso implica.Não há nada mais triste do que teres fome intelectual e não teres um alimento.
Neste toda a gente tem um plano, a personagem principal tem um cão que tem um papel muito importante. Foi propositada a inclusão de um animal de estimação na história?
É central na história. Até tinha mais importância, porque este livro foi pensado para chegar a um momento central em que o protagonista é o cão. Esse momento, depois não está, mas todo o livro foi pensado para chegar àquele momento quase de clímax, quase o centro do livro, e que era o momento que dava sentido até ao título, o de que tens um plano, mas, depois, acontece alguma coisa e essa coisa que acontecia envolvia o cão. Mas, lá está, eu tinha esse plano, toda a gente tem um plano, e, depois, as coisas… Há ali um momento perto do fim do dia que é um momento muito intenso, muito violento, e eu senti que não podia sobrecarregar aquela história com mais intensidade porque perdia o efeito. Se é sempre intenso, chega a uma altura em que já adormeceste os sentidos do leitor. Mas o cão, mesmo acabando por não ter esse episódio de protagonista, é central na história.
Fazes várias partilhas nas tuas redes sociais do teu gato. Numa delas, cito-te: “O incrível Mr. Leo. Nunca pensei gostar tanto de um gato”. Foi o teu primeiro animal de estimação ou o teu primeiro gato?
Não foi nem o meu primeiro gato, nem o meu primeiro animal de estimação. Quando eu tinha para aí uns cinco anos, nós tivemos um gato, eu vivia com os meus avós e a minha mãe e aquele gato, acho que se chamava Tareco, destruiu tudo. E o meu avô, que não era muito de animais, atirou-o da janela. O gato sobreviveu, a janela não era muito alta. Uma das minhas primeiras memórias é da destruição causada pelo gato e, depois, de ver o gato muito maltratado pelos outros gatos na rua. Um dia, desapareceu. Depois, tivemos um cão que era do meu bisavô que vivia no Alentejo e, depois, ficou connosco, o Lorde. Também tive um periquito e, depois, um canário, com os quais tive uma ligação muito afetiva. E arranjámos agora este gato por causa dos meus filhos.
Numa crónica que lhe dedicaste, disseste que era para trazer alegria aos teus filhos, mas também ficaste rendido. O que te tem ensinado o Leo?
Fiquei rendido e tenho uma relação muito engraçada com o gato, porque o gato é mau. Há aqueles gatos que ronronam, mas este gato não quer saber de mim, de se deitar ao meu colo, embora, se eu lhe disser alguma coisa, ele faz. Se é para ele não ficar na sala, eu digo só "baza" e ele sai, mas não respeita mais ninguém, temos uma relação muito curiosa. Aquela história de os gatos serem muito independentes é ele. Não gosta de mimos, não gosta de festinhas, é mesmo gato, não quer saber de ninguém, nós estamos ali por favor dele. E descobri essa afinidade com o gato que os meus filhos também têm, apesar de ele ser arisco, a minha filha também tem uma relação muito intensa com ele, hoje, é mais um elemento da família. Eu não imaginava com 40 anos que iria descobrir uma relação assim com um animal de estimação.
E pacificaste a relação com o Tareco da tua infância?
É um bocadinho uma coisa de compensação. Se calhar, a personalidade do Leo é uma vingança do Tareco. “Eu sei o que é que vocês fizeram ao Tareco” [risos].
"A este que, sem o saber, me faz companhia, dei-lhe um nome a que não responde, presto-lhe cuidados que não me agradece, cumulo-o de afetos que só eu entendo, sofro com as suas aflições triviais de gato. Não posso duvidar da sua existência autónoma, mas é como se o gato, o meu gato, fosse apenas eu a vê-lo”. Há um lado misterioso nos gatos que te intriga?
Eu não sou nada animalista, mas, para mim, os animais são um mistério. Os animais somos nós a vê-los, sabemos lá o que eles estão a pensar, há ali um mundo a que nós não temos acesso. A forma como os tratamos diz muito de nós, diz muito de como nós vemos não só os animais, mas o mundo. Nessa ligação, descobrimos, por vezes, coisas de nós que nos eram inacessíveis, porque, se nós pensarmos, aqueles animais estão à nossa mercê… tudo o que fazemos por eles é gratuito porque eles nunca nos vão agradecer. Claro que reagem, um cão principalmente, de agradecimento, de gratidão, mas é uma coisa largamente incomunicável, é uma relação pura nesse sentido, não é uma relação de interesse.
A forma como tratamos os animais diz muito de nós, diz muito de como nós vemos não só os animais, mas o mundo.
E ficam pelo Leo ou vão arranjar mais animais?
Agora, também arranjámos um pássaro, e nós estamos a cuidar dele por nós, o pássaro não nos vai agradecer e tudo isso faz parte do mistério da criação, acredite-se ou não, que isto foi criado por algo ou por alguém. Mas faz parte do mistério. Os animais fazem parte desse mistério num plano diferente do nosso, e é bom esse convívio para não só pensarmos no mistério que são os animais, mas também no mistério que somos nós. Porque, ao olharmos para eles e pensarmos em todas estas coisas, também pensamos no sentido das coisas para nós, encontramos no contacto e no convívio com os animais sentimentos, ideias, pensamentos que nos dizem respeito a nós, levanta uma série de questões.
Vou fazer uma pergunta retórica: já não te imaginas sem ele…
Eu acordo muito cedo e ele acorda sempre comigo. Dorme normalmente no quarto de um dos meus filhos, mas já sabe que eu acordo àquela hora, vem para a sala ter comigo, é a minha companhia quando tudo dorme.
Num próximo romance, podemos ter um gato como uma das tuas personagens?
Sim, e será necessariamente parecido com o meu gato porque vejo como ele funciona. E sei o que é que ele come. Acho sempre importante saber o que uma personagem come, e isso também é válido para os gatos. Portanto, é muito provável que num próximo livro haja um gato.