Michel Desmurget: “Não encontrei nada para combater os efeitos negativos dos ecrãs que fosse tão fundamental como a leitura”
Por: Rita Caetano a 2024-07-22
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Depois de, em 2021, ter alertado para o efeito que a exposição aos dispositivos digitais está a ter no cérebro e desenvolvimento das crianças e jovens, no livro A Fábrica de Cretinos Digitais, publicado em Portugal pela Contraponto, o neurocientista Michel Desmurget revela agora que a leitura é o remédio perfeito para combater esses efeitos negativos. No novo livro — Ponham-nos a Ler!, lançado pela mesma editora —, o também diretor de investigação do INSERM (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica francês) dá a conhecer os benefícios de ler, que é, avisa, “muito mais do que juntar letras, é compreender o que se está a ler”. A leitura é fundamental para desenvolver a linguagem, a concentração e a empatia, e para o sucesso escolar e profissional, tal como é importante para compreender o mundo, e não se deixar enganar pela extrema-direita. “Se quiser ajudar os seus filhos, reduza o tempo passado em frente aos ecrãs e fomente a leitura”, aconselha Michel Desmurget.
Ponham-nos a Ler! é a continuação do livro anterior, A Fábrica de Cretinos Digitais?
É uma continuidade, mas é outro livro. Surgiu porque, depois do anterior, as pessoas começaram a dizer-me que concordavam com a observação feita, mas perguntavam-me o que deveriam fazer para quebrar esse impacto negativo dos dispositivos tecnológicos nas crianças. A resposta para mim era óbvia: temos de os pôr a ler. Mas como me questionavam sobre se tinha a certeza disso, fui pesquisar sobre o que era benéfico para moldar o cérebro e para o seu desenvolvimento. Claro que há muitas coisas que são importantes, como o desporto, a arte, a música, mas não encontrei nada que fosse tão fundamental e que tivesse um efeito tão profundo e de tão longo alcance como a leitura. Fiquei envergonhado, porque este é o meu trabalho e já deveria saber disso. É também o fator mais importante para vaticinar o desempenho escolar a longo prazo e até a trajetória pessoal dos nossos filhos. Ler tem efeitos realmente únicos. Muitos pais perguntam-se como podem melhorar a vida dos filhos, e visto que a maioria não lhes pode dar 50 milhões de euros de herança, ler é algo que lhes pode facilitar a vida.
Porque é que ler é tão benéfico para as crianças?
Tem impacto em tudo o que nos torna humanos. Há muitos estudos sobre inteligência e ler torna-nos realmente mais inteligentes. O Quoficiente de Inteligência (QI) não inclui apenas pensamento, desempenho e cognição, mas também emoção. A leitura aumenta o QI, porque tem um impacto muito profundo na linguagem. A linguagem dos livros e da escrita é muito mais complexa do que a oral. Na linguagem escrita, o léxico, a gramática, a sintaxe, são muito mais importantes. A linguagem do pensamento que nos ajuda a pensar e a compreender o mundo é a escrita.
Portanto, as crianças que leem menos são menos inteligentes?
As crianças que leem mais têm mais conhecimentos gerais, e mesmo das coisas do quotidiano. Têm maior probabilidade de dar a resposta certa a perguntas. Mas a leitura não tem impacto apenas no conhecimento geral, mas também na criatividade, que depende do conhecimento. Impacta ainda positivamente a concentração, que é destruída pelos ecrãs, a capacidade de escrever, a capacidade de organizar e sintetizar o pensamento e de descrever algo.
[...] a leitura não tem impacto apenas no conhecimento geral, mas também na criatividade, que depende do conhecimento. Impacta ainda positivamente a concentração, que é destruída pelos ecrãs, [...]
Há pouco, disse que a inteligência também é emoção. Como é que a leitura interfere na parte emocional?
Há vários estudos que demonstram que o livro é o único lugar no qual podemos entrar no cérebro e no pensamento da personagem, portanto, ler livros é quando realmente aprendemos a entender por que razão as pessoas agem de determinada maneira e até de nos fazer prever como irão agir. Quando lemos e percebemos a causa da tristeza ou da alegria, as regiões do cérebro que são ativadas são as mesmas de quando sentimos esses mesmos sentimentos. Como a leitura tem um impacto cognitivo, emocional e social, não é de admirar, por isso, que tenha um efeito enorme nos resultados escolares. A escola não conta tudo sobre uma criança, mas acho que todos concordarão que ter boas notas e ter um bom percurso escolar facilitará muito a vida. A Academia Americana de Pediatria garantiu que o desempenho na leitura é o marcador que melhor prevê a longo prazo os resultados escolares de uma criança de seis ou sete anos. A leitura ajuda-nos a aprender, não é só boa para aprender português, francês, filosofia, mas também matemática e ciências.
É muito diferente ler em papel e num dispositivo tecnológico?
A forma como o cérebro processa ambas as informações é completamente diferentes e, quanto mais complexo é um texto, maior é a vantagem de o ler em papel do que num ecrã ou ouvi-lo num áudio. Quando lemos em papel, processamos a informação com muito mais profundidade, temos maior capacidade de a memorizar, de nos concentrarmos e de a entender. Quando estamos num ecrã, surgem as notificações, temos os hiperlinks, temos as redes sociais... Até agora, não inventamos nada melhor e mais eficiente do que livros para a leitura e a aprendizagem.
No livro, diz que as taxas de leituras estão a diminuir cada vez mais. A culpa é dos aparelhos digitais?
Lemos cada vez menos e os últimos números conhecidos são dramáticos. Em França, há apenas dez por cento de leitores assíduos, que são os que leem 20 livros por ano, que são 20 minutos de leitura por dia; há 50 anos, rondava os 35 por cento. Mas não é um exclusivo de França, está a acontecer por todo o lado. O mais assustador é que não está só a diminuir, está a cair de uma forma alarmante. Há uma correlação clara entre o aumento do tempo que passamos nos ecrãs, seja a ver filmes, séries, jogar videojogos, redes sociais, e a diminuição do tempo que passamos a ler. A ideia de que lemos na internet é falsa, porque o tempo gasto a ler online é apenas dois a três por cento do tempo gasto por lá.
Mas acha que a sociedade está mais consciente disso do que quando publicou a Fábrica de Cretinos Digitais?
Sim, acho que sim, até porque já não tem que ver só com os nossos filhos, mas começamos a perceber que é um problema coletivo. Os dados do PISA [um estudo da OCDE que avalia conhecimentos e competências dos alunos de 15 anos a matemática, a ciências e a leitura] mostram claramente que quase metade das crianças europeias (Portugal, França, Alemanha, etc.) tem dificuldade em compreender um texto simples. De facto, para três quartos das nossas crianças, ler é apenas a capacidade de extrair ideias explícitas e visíveis de um texto concreto, e isso não é leitura. Se compararmos o PISA de 2018 e 2022, França perdeu um ano de escolaridade, isso significa que uma criança que agora tem 13 anos tem o nível de escolaridade de uma criança que tinha 12 há quatro anos. Em Portugal, perderam-se nove meses. Portanto, a queda é dramática. As pessoas não percebem que ler é difícil e não é porque se é capaz de descodificar palavras simples que se está a ler. Ler é principalmente uma questão de compreensão, isto é, de desenvolver a linguagem e o conhecimento. Os políticos começam agora a ver que nos países europeus e da OCDE estamos muito longe de países asiáticos, como Singapura, China e Japão, e isso torna-se numa ameaça para a economia. Durante algum tempo, as pessoas diziam que precisávamos apenas de quatro ou cinco por cento de pessoas inteligentes para gerir a economia. Esta ideia é muito estúpida, porque para extrair cinco por cento de genialidade, precisamos de um grande recurso em termos de pessoas de onde os extrair.
Ler é principalmente uma questão de compreensão, isto é, de desenvolver a linguagem e o conhecimento.
O desempenho económico de um país está associado ao sistema de educação, é isso?
Está profundamente correlacionado com o desempenho do sistema educativo e ao que hoje chamam de literacia, que está totalmente associada à leitura. Um estudo, publicado na revista Science, compara o milagre económico do Leste Asiático com vários países da América Central, que não tiveram esse crescimento económico, e mostra de forma bastante convincente que não é um milagre económico, mas um milagre educacional. Os asiáticos gastam muita energia, tempo e recursos na educação dos seus filhos, e isso tem um impacto profundo e rápido na sua economia.
Se continuarmos a perder leitores estamos, estamos a pôr em risco a humanidade?
É um risco para a economia e para nós enquanto sociedade. Portanto, o crescimento económico depende profundamente da nossa inteligência. Quanto mais a inteligência coletiva cair, e está a cair, como indicam todos os dados, estamos perante uma ameaça. Um estudo da Universidade de Stanford, que queria perceber como é que os jovens entendiam o que liam na internet, que é a sua principal fonte de informação, concluiu que até os universitários não percebem o que leem. Há falta de linguagem, de conhecimento, de entendimento. Esta conclusão não é apenas uma ameaça para a economia, mas também para a democracia. Em França, Marine Le Pen ganhou as últimas eleições europeias e isto só é possível porque há um buraco negro na capacidade de compreender e pensar. Numa nação educada, na qual as pessoas percebem o que leem, era simplesmente impossível isso acontecer. A diminuição da inteligência faz com que tenhamos menos linguagem, menos cultura, menos conhecimentos sobre História e isso faz com não sejamos capazes de compreender o mundo que nos rodeia.
Numa nação educada, na qual as pessoas percebem o que leem, era simplesmente impossível isso acontecer.
O que que se deve fazer: pôr as crianças a ler?
O que nós observamos é que a escola não consegue compensar o défice existente na família. Isto não significa que a escola não tenha impacto, mas é muito inferior comparado com o impacto dos pais e da família. A verdade é que o sistema educativo não está a conseguir reduzir as desigualdades sociais. Segundo o PISA, em França e Portugal, somos péssimos a fazê-lo. Isto acontece, primeiro, porque depende muito dos pais e os primeiros anos tem um grande impacto no desenvolvimento; segundo, para termos impacto, temos de falar diretamente para a criança, e um professor com 25 alunos não o consegue fazer. Há um estudo que mostra que um professor da pré-escola ou do ensino primário passa cinco a sete minutos a falar cara a cara com uma criança durante o dia.
Então, os pais têm uma palavra a dizer.
Há um estudo na África do Sul em que foi pedido aos pais que viviam em guetos para ler aos filhos a partir dos três meses, mas muitos pais não sabiam ler, foi-lhes, então, dito para lerem as imagens. Isso teve impacto na atenção, na concentração e na linguagem das crianças. O indicador mais forte de um percurso escolar de sucesso de uma criança é o domínio da sua língua e a desigualdade linguística é a raiz da disparidade escolar. Portanto, a família é fundamental e o papel dos pais é conversar com os filhos e ler para eles, e quanto mais o fizerem, melhor. É a única maneira de desenvolver a leitura e a questão é que não haverá leitores se não houver prazer em ler. É importante que se comece a ler para os bebés aos dois ou três meses. Os estudos mostram que tem um efeito positivo mesmo nos prematuros. Mas também é importante continuar a ler para as crianças, mesmo depois de já saberem ler, porque, até serem completamente autónomas na leitura, não terão prazer. Quanto mais lemos para as crianças, mais elas leem sozinhas, seja qual for a idade.
É melhor ler ficção do que não ficção?
Fizeram-se alguns estudos que mostraram que, para desenvolver a linguagem, o pensamento e a inteligência emocional, o melhor é ler livros de ficção. O que não significa que não se deve ler livros de não ficção. Também estudaram o efeito da manga e da banda desenhada e perceberam que, por uma questão de volume, tem menos impacto, mas, mais uma vez, isso não significa que não se deva ler este género, mas, para a linguagem, é melhor um livro de ficção. Quando se lê um livro como o Harry Potter, que tem um milhão de palavras, mais ou menos, aprende-se mil palavras desconhecidas, portanto, para termos um milhão de palavras novas teremos de ler 10 a 15 livros, com uma BD é mais difícil. Na internet, nas redes sociais, nas mensagens, nos emails, a linguagem é muito pobre e o volume de palavras é baixo.
Há uma ligação entre a leitura, o desenvolvimento social e a capacidade de fazer amigos?
O impacto está bem documentado, porque a leitura dá-nos capacidade de compreender os outros e de sentir o que os outros sentem. O saber pormo-nos no lugar do outro, a chamada empatia, é muito importante. E o que temos visto em estudantes universitários desde 1980 é que há uma queda da empatia e um aumento paralelo da escala narcisista, e isso tem impacto também na tolerância. Os inquéritos realizados pelo Pew Research Center mostram que a geração mais nova é a que provavelmente mais aceita, por exemplo, a homossexualidade, mas isso não é ser tolerante. Ser tolerante é aceitar as posições contrárias às nossas, e nisso eles têm dificuldades. Existe uma clara tendência para menos empatia, mais intolerância e mais narcisismo. A empatia é o que nos ajuda e nos permite viver em sociedade, e os livros de ficção são uma parte importante para a desenvolver.
Os adolescentes estão a perder amigos por causa dos aparelhos digitais e dessa falta de empatia?
Quando falamos disto, as pessoas afirmam que eles têm os amigos online, mas, se olharmos para o estado da saúde mental dos mais novos é preocupante, e parte disso está obviamente relacionada com o uso das redes sociais. Os estudos mostram que há uma tendência para o aumento da depressão, ansiedade, agressividade, solidão e tentativas de suicídio.
Quais são os maiores desafios que a amizade enfrenta hoje em dia?
Os amigos têm de se encontrar e ter tempo para estar juntos. Quando eu andava na escola, lembro-me de que, se houvesse uma briga entre amigos, ela terminava ali na escola e, no dia seguinte, já não nos lembrávamos. Hoje em dia, as discussões vão para casa pelas redes socias e isso é muito preocupante. As pessoas costumam dizer que, se não derem um smartphone aos filhos, eles sentir-se-ão sozinhos, mas não há nenhum estudo que confirme que eles ficam isolados ou terão menos amigos por isso. Certo é que, quando lhes damos um dispositivo desses, expomo-los a um nível de violência e de ciberbullying totalmente insano. O perigo está mais aqui do que na criança que se sente sozinha. Eu diria que precisamos de interações humanas que não sejam mediadas por um ecrã. Conversar com um amigo ao vivo não é o mesmo que conversar pelo TikTok ou noutra rede social, o cérebro não reage da mesma maneira, requer mais esforço e tem menos reação.
[...] precisamos de interações humanas que não sejam mediadas por um ecrã.