Alberto Manguel | "O livro é sempre um inimigo simbólico"
Por: Luís Osório a 2022-12-06
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Partilhamos consigo a segunda parte da entrevista a Alberto Manguel, publicada na edição de Natal da revista Somos Livros. Se ainda não leu a primeira parte, descubra-a aqui.
Falava-lhe da pureza do olhar, do encantamento que encontramos nas crianças. Sei que gosta particularmente de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll…
Há uma inocência muito particular num leitor que inicia a leitura. Inocência de descobrir uma história, de acreditar nessa história. Quando eu era pequenino descobri que a voz que nos contava a história não era, necessariamente a voz do autor. Recordo uma voz que lia A Ilha do Tesouro e lembro-me de ter ficado tristemente surpreendido ao perceber que aquela voz não era de Stevenson, mas de um ator chamado Jack Hawkins. Fiquei chocado, uma parte da inocência morreu ali. Mas falou-me de Alice e os livros de Carroll não são inocentes, Alice é uma personagem com a necessidade da lógica da razão que têm os adolescentes, os adolescentes acham que o mundo dos adultos é absurdo, acham que as regras não devem ser seguidas, não percebem sequer a lógica. E Alice está constantemente a interrogar as ações e no final do primeiro livro acaba por confrontar o Rei com o absurdo do que acabou de dizer. Ela não quer fazer parte daquele jogo de loucos — o Gato Risonho informa-a que se ela for para a esquerda encontrará o Chapeleiro Louco, se for para a direita encontrará a Lebre Louca e Alice diz ao Gato Risonho que não quer ir com loucos, mas o Gato diz-lhe que ela não pode fazer outra coisa por ali serem todos assim.
“Desde o primeiro momento da literatura damos nomes à enormidade do que estamos a viver, do que estamos a pensar, do que estamos a dizer também.”
Também Alice pode ser lida em função do nosso tempo e das nossas tragédias.
É uma descrição da nossa sociedade, o que está a fazer a literatura é colocar-nos em espelho perante a loucura. Desde o primeiro momento da literatura damos nomes à enormidade do que estamos a viver, do que estamos a pensar, do que estamos a dizer também.
Permita-me que volte aos filmes, à complementaridade entre o cinema e a literatura. Há um filme de Robert Rossen, Lilith e o seu Destino, em que a personagem de Jean Seberg, doente mental por quem Warren Beatty está apaixonado, faz uma pergunta esmagadora, “What so wonderful about reality?”.
Sim, sim, absolutamente. O problema é quando acreditamos que a realidade é uma descrição realista do mundo. A realidade é quase o oposto disso. Nas nossas vidas, em todas as vidas, vivemos momentos de casualidades, de encontros estranhos, de notícias incríveis e pesadelos injustificados…
“Estamos a viver milagres todos os dias, cada momento é um milagre que acaba na morte.”
Há quem defina tudo isso com uma ideia de transcendência.
Mas tudo isso, o modo como nos acontece, como o pensamos é interessante e maravilhoso. Para Picasso o grande milagre é que quando entrava no banho o seu corpo não se dissolvia na água. Estamos a viver milagres todos os dias, cada momento é um milagre que acaba na morte. Vários romances falam disso.
Que romance lhe veio agora à cabeça?
The Green Child, de Herbert Read. Há a descoberta de um agente que vive debaixo da terra, a descoberta que o sentido da vida passa por nos convertermos em pedra. Viemos do pó, voltamos para o pó, é esse o sentido humano, a literatura está constantemente a dizê-lo. Um pensador da Idade Média definiu a vida humana como o voo de um pássaro que entra numa sala iluminada vindo da noite mais escura. Somos essa breve passagem na sala iluminada, essa é uma poderosa imagem do que é a nossa vida.
Quando foi a última vez que pensou em Deus?
Eu leio um bocadinho de A Divina Comédia todas as manhãs. Todos os dias penso em Deus. É um personagem maravilhoso da história da ficção, um personagem que evolui do Antigo para o Novo Testamento. Jack Miles é um teólogo muito interessante e que no seu livro Deus. Uma Biografia faz a leitura de Deus do Génesis até ao momento em que sacrifica o seu filho em nome dos pecados do mundo. Não creio em Deus como um religioso, mas continuo fascinado por uma das melhores histórias que foram alguma vez escritas.
“Não creio em Deus como um religioso, mas continuo fascinado por uma das melhores histórias que foram alguma vez escritas.”
Se tivesse que salvar cinco, seis ou dez livros de um incêndio que destruiria todos os livros do mundo, salvaria a Bíblia?
Fizeram essa pergunta a Jean Cocteau e ele respondeu que salvaria o fogo. Não sei. Todos os dias a minha lista seria diferente. Alguns livros estão sempre comigo. Alice, Dom Quixote, A Divina Comédia, Rei Lear, os poemas de San Juan de La Cruz.
Na peça By Heart, Tiago Rodrigues inspira-se na cegueira da sua avó para nos contar uma história maravilhosa. A avó, sabendo que deixará de ver, fixa todas as palavras de um livro para continuar a ler mentalmente depois de cegar. Que livro escolheria se deixasse de ver?
Comecei a ler em criança. Tenho uma biblioteca na minha cabeça, uma biblioteca demasiado grande. Não creio que precisasse.
O que procura ler quando lê?
Releio mais hoje. Não tenho agora a ambição ou a curiosidade de ler tudo como antes. Desejava ler absolutamente tudo. Hoje, pelo contrário. Quero menos. Releio os clássicos, mas continuo a gostar de descobrir autores novos. Confesso-lhe que são poucos os que ficam na minha biblioteca mental. Na Divina Comédia, Dante diz-nos que há muito poucas cadeiras vazias no lugar onde estão as almas que se salvaram, é um pouco como eu com os novos livros que abro. Na minha biblioteca mental as prateleiras têm muito poucos lugares vazios.
“Na minha biblioteca mental as prateleiras têm muito poucos lugares vazios.”
E viagens? O Alberto passou por muitos países…
Demasiados.
Israel, Argentina, Canadá Itália, França. Inglaterra, Taiti e agora Portugal. Que lugar é o seu?
Não é geográfico. É um país mental composto pela experiência temporal nesses lugares. Falou de Israel, mas a Israel que conheci aos três ou quatro anos não existe, só existe em mim. A Argentina da minha adolescência, a França e a Itália da minha juventude, o que lhe posso dizer? Esses países já não existem.
É como um livro marcante que tenha lido há 50 anos.
Claro. Se o for ler agora será outra coisa. Os livros têm a imortalidade que nós lhes damos cada vez que os abrimos. A minha relação agora, profundamente sincera, é com Portugal. Sei que a generalidade das pessoas recorda o seu primeiro amor, mas no meu caso, não. No meu caso é o último amor. Estou muito agradecido pela generosidade com que me receberam, a mim e aos meus livros.
Espera partir daqui para o último lugar imaginário?
Ah, sim. Espero sinceramente que este seja o último capítulo da minha vida. O capítulo com que terminará o meu romance. Um grande romance pode ser infinito, mas um bom livro tem de acabar e espero que termine em Portugal.
E será um bom final, um “happy end”?
Espero que sem dor, não gostaria que fosse um final com dor física. Mas a última frase do livro, o momento antes de fechar, o momento em que a morte baterá à porta, não me provoca qualquer receio, pelo contrário.
Curiosidade?
Muita curiosidade de perceber como será. Foram os livros que me ofereceram as palavras que são as chaves de entendimento do mundo e de todas as experiências que tive ou sonhei ter. Também aprendi nos livros que as palavras são morte e espero que quando ela chegar eu possa com ela falar.
Voltar a falar com Jorge Luís Borges numa qualquer livraria imaginária.
Seria bom.
Lembra-se do dia em que o viu pela primeira vez?
Lembro, mas não quero empolá-lo. Não foi um momento dramático. Sabe, eu era adolescente, tinha 15 anos e era arrogante. Tudo o que acontecia no mundo se centrava em mim.
Um adolescente, portanto.
Um puro adolescente. Sabia que era um escritor importante, mas não era para mim impressionante, não o mitificava. Já há uns poucos anos, aqui em Lisboa, quando conheci Eduardo Lourenço foi um momento extraordinário. Uma das pessoas mais generosas que encontrei. Usava a sua inteligência para que os outros pudessem brilhar, para os iluminar. A partir de determinada altura, lá está, deixei de ser adolescente.
“quando conheci Eduardo Lourenço foi um momento extraordinário. Uma das pessoas mais generosas que encontrei. Usava a sua inteligência para que os outros pudessem brilhar, para os iluminar.”
Tem saudades do tango que só se pode dançar em Buenos Aires?
Como não? Mas a minha Argentina é nostálgica, só habita na minha cabeça, uma memória que fui inventando.
E da sua ama?
A Eline. Uma mulher extraordinária, tive muita sorte pois ela ocupou-se da minha infância 24 horas por dia, sete dias por semana. Não tinha de a dividir com os meus irmãos, ela existia para mim. Viajava comigo, ensinava-me, comia comigo, dormia comigo. Só tinha um único defeito, não tinha qualquer sentido de humor, o que se entende, pois fugira da Alemanha nazi. Fora formada na cultura alemã, era essa a sua matriz, os judeus da Europa não faziam confusão entre o nazismo e a cultura alemã. E ela era obsessiva com isso, para ela um rapaz com três ou quatro anos deveria ser formado nessa matriz.
A Eline foi o seu Aristóteles.
Com a vantagem de a Eline ser certamente mais afetiva do que Aristóteles que, como sabemos, não acreditava nos afetos.
Nem tinha, ao que se sabe, sentido de humor.
Ao contrário de Platão. Não gostaria de conhecer Aristóteles ou Dante, que era demasiado orgulhoso. Não devemos fazer confusão entre autores e obra. Leio todos os dias A Divina Comédia, mas não me apeteceria conhecer Dante. Robert Louis Stevenson, sim. Pelo sentido de humor, pela ética, pela empatia, pela energia intelectual e espiritual.
Que nome escolheria para jantar amanhã entre todos os nomes da sua biblioteca mental?
Talvez Stevenson. Talvez juntasse à mesa Santa Teresa de Ávila, que tinha um humor extraordinário. E Júlio Verne. Seria um belo jantar.
Foi um prazer, Alberto.
Obrigado.