"Klara e o Sol" | O que faz de nós seres humanos?
Por: Sónia Rodrigues Pinto a 2021-05-25 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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“Quando éramos novas, Rosa e eu estávamos a meio da loja, ao lado da mesa das revistas, e conseguíamos ver mais de metade da montra.” É na monotonia de um dia comum que tem início Klara e o Sol, de Kazuo Ishiguro. Klara e Rosa são Amigas Artificiais (AA), androides situados algures entre o boneco e o robô, concebidos com o objetivo de acompanhar o dia-a-dia de uma criança. A narrativa parece-nos familiar, relembrando Nunca Me Deixes (2019), em que a protagonista é um clone destinado a doar os seus órgãos até morrer, e Os Despojos do Dia (2017), uma narrativa sobre um mordomo que pondera sobre a sua vida ao serviço de um lorde. A partir do olhar desses protagonistas, percebemos que as diferenças entre a nossa realidade e a ficção de Ishiguro não são mais do que ímanes que se atraem um ao outro.
"Os dois taxistas lutavam como se a coisa mais importante fosse infligir o maior dano possível um ao outro. (...) Tentava sentir na minha própria mente a raiva que os taxistas tinham experimentado. Tentava imaginar eu e Rosa tão zangadas uma com a outra que começássemos a lutar daquela maneira, tentando realmente danificar os corpos uma da outra.”
Kazuo Ishiguro recorre a um olhar distanciado — essa desfamiliarização que se apodera da literatura para alienar a realidade em que vivemos — e reflete sobre as grandes questões que nos apoquentam enquanto humanos. Klara começa, desde muito nova, a estudar a emoção dos homens com uma curiosidade que a distingue de outros Amigos Artificiais. Ao ser escolhida para tomar conta de uma criança chamada Josie, Klara depressa se apercebe da crueldade da vida e dos mecanismos de defesa que se criam para evitar o sofrimento, ao mesmo tempo que aprende sobre a magnitude do amor.
A ficção científica — ou “literatura de ideias”, como foi apelidada pela autora Pamela Sargent — sempre procurou espelhar a realidade humana com a ajuda da tecnologia e da ciência. Mas, talvez, a forma mais poderosa de ficção científica seja a que se aventura no banal do quotidiano humano. No final do livro, percebemos que todos os AA estão sujeitos a um fim, à medida que as suas baterias vão expirando. Tal como um ser humano, também os androides têm uma data de validade, refletindo sobre a sua missão enquanto Amigos Artificiais, até chegar o seu fim. Klara não é exceção, focando-se especialmente em Josie e na sua família. Ishiguro termina, assim, mais uma obra com uma das suas muitas mensagens subliminares: onda a vida é efémera, o amor é infinito.