"A Vida Mentirosa dos Adultos" | Aperfeiçoar a mentira como forma de contar a verdade
Por: Marisa Sousa a 2020-11-17
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O The Guardian considerou-o "surpreendente", a revista norteamericana Vox classificou-o como "formidável" e o El País apelidou as suas personagens femininas de “verdadeiras obras de arte”. A Netflix comprou os direitos de adaptação ainda antes do lançamento da edição original e prepara para breve a estreia da série com título homónimo.
A ficção literária é, nas palavras de Ferrante, “uma mentira propositada para dizer sempre a verdade”. O seu novo romance, A Vida Mentirosa dos Adultos (Relógio D’Água), é contado na primeira pessoa por Giovanna, a adolescente protagonista, que ao longo da narrativa que acompanha o seu crescimento aprende, com todas as dores de crescimento inerentes, que os adultos à sua volta — principalmente a sua família — lhe mentem. E mais do que o conteúdo destas mentiras, é a forma e o objetivo das mentiras que a desconcertam e transformam.
” Para tolerar a existência, mentimos, sobretudo a nós próprios. As mentiras protegem, atenuam a dor, permitem que evitemos o susto de refletir seriamente, diluem os horrores do nosso tempo."
Ficamos desarmados, frente a frente com as desilusões que nascem das expetativas, das aparências frágeis, da traição, das teias complexas que os adultos vão tecendo e onde acabam por ficar presas a inocência e a ingenuidade das crianças. Ao jeito de Ilusões Perdidas, de Balzac, ou Educação Sentimental, de Flaubert (como tão bem lembrou a revista The Atlantic), A Vida Mentirosa dos Adultos põe-nos na primeira fila. É daí que assistimos a relações tumultuosas e ambiguidades morais, à desorientação e revolta dos que se sentem abandonados, os desajustados que, a determinado ponto na escala da dor, encaram a vida como um processo que se faz em oposição a tudo e todos os que lhes falharam, superando-os — principalmente nas suas falhas. "Aperfeiçoei a minha maneira de mentir contando a verdade", confessa Giovanna.
O resto é arte, a de contar uma história com várias camadas onde, amiúde, revemos também estilhaços e dores que foram (e são?) nossos. A arte de nos levar, sem darmos conta, a compreender e a perdoar algumas das mentiras que nos povoaram. Reais ou imaginadas. A arte de materializar Giovanna na nossa vida e de não termos vontade de a deixar ir embora depois da última página.