Estar em casa | Histórias quentes para os dias frios
Por: Bertrand Livreiros a 2020-12-04
Últimos artigos publicados
Com a chegada do outono e dos dias mais frios e curtos, somos convidados a ficar em casa a recordar os dias quentes e ensolarados de verão, ou simplesmente a passar a os dias embrulhados numa manta na companhia de uma bela chávena de chá, com livros, muitos e bons livros.
Ao passearmos pela estante, (re)encontrámos A Casa, texto escrito por J. Patrick Lewis e ilustrado por Roberto Innocenti. Trata-se de um magnífico álbum ilustrado que narra a história de uma casa ao longo do século XX. Passando por diferentes fases, acompanha a História da Europa e assinala momentos difíceis, como a guerra, e outros de esperança, mas também descrevendo as pessoas, os costumes e as tradições. É um livro que requer tempo, atenção e sensibilidade. Tempo, para explorar as variações de cor e de luz e as variações das estações; para apreciar a ação do homem sobre as coisas. Atenção, para que o leitor se perca em cada pormenor da ilustração. Sensibilidade, porque a casa não é apenas um espaço físico, espacial, mas é essencialmente emoção. Com esta leitura, evidenciamos a casa como centro do mundo, espaço onde os indivíduos se movimentam e organizam a sua vida.
As casas, as nossas casas podem ter configurações distintas. Muitos povos nómadas escolhem casas redondas, não se sabe ao certo porquê. Talvez por inspiração da roda, lembrando o movimento, a viagem, a caminhada, o seguir o destino. Na tradição irlandesa, a casa redonda é um símbolo celeste representando a atitude dos homens face às forças do mundo sobrenatural. Outras tradições preferem as casas quadradas para melhor se situarem no espaço, de acordo com os quatro pontos cardeais. Bill Bryson, conhecido por escrever livros de viagens e humorísticos, convida-nos a fazer uma viagem diferente, uma viagem dentro da nossa própria casa, esclarecendo o leitor acerca da maneira como a maioria de nós vive.
Há casas que contam histórias. Umas mais entusiasmantes, outras mais singelas. Virginia Woolf, em A Casa Assombrada e Outros Contos, fala-nos de uma casa repleta de divagações e recordações de infância, sonhos não concretizados, de velhas esperanças e amargas desilusões marcadas pelo amor e pela solidão. Esta é uma casa com uma história melancólica.
N’ A Casa dos Espíritos, a família Trueba vive num universo povoado de espíritos, mistérios, tragédias e amor. Numa casa com marcas indeléveis habitam Clara, Blanca e Alba, mulheres da mesma família, resistentes, fortes e sofridas. Afinal de que é feita uma família?
Bem-vinda a casa [Memórias] é um conjunto de textos autobiográficos da escritora Lucia Berlin, nos quais estava a trabalhar antes de morrer. Nele podemos encontrar fotografias, cartas da sua vida privada, o registo de muitas memórias, os lugares onde viveu e as pessoas com cuja vivacidade se cruzou - e a casa, a casa onde viveu os primeiros anos de vida, que “era uma casinha amorosa, com muitas janelas e fogões a lenha robustos, ecrãs de rede bem esticados, a proteger dos mosquitos. Tinha vista sobre a baía, pores-do–sol e estrelas e as deslumbrantes auroras boreais”, mas também outras casas onde viveu. É no espaço doméstico que revelamos quem verdadeiramente somos, que gerimos os momentos agradáveis e desagradáveis. A casa como espaço íntimo.
Em Casa - Uma História da Vida Privada inicia-se com a planta da casa da sua própria casa, uma velha reitoria da Igreja Anglicana, em Norfolk. Bill Bryson, na introdução do livro, alerta o leitor que irá “escrever a história do mundo sem sair de casa”, de divisão em divisão, partilha com ele as suas reflexões sobre a importância da casa e das suas divisões na evolução e na história da vida privada. “A casa de banho seria uma história sobre a higiene, a cozinha sobre a culinária, o quarto acerca de sexo, morte e sono, e assim sucessivamente”. Afinal, as casas espelham o mundo e as pessoas que fazem a história e a vida acontecer. O autor confessa o seu espanto quando descobriu “que tudo o que acontece no mundo (…) vai acabar, de uma maneira ou de outra, em nossa casa. Guerra, fome, a Revolução Industrial, o Iluminismo – encontramos tudo isso nos sofás e nas cómodas, escondido nas pregas dos cortinados, na macieza das almofadas, na tinta das paredes”.
Ampliar a geografia pessoal, conhecer as raízes obriga-nos a abandonar o conforto do lar e a embarcar em grandes aventuras, assim como Irene Bobs e o seu marido, o melhor vendedor de carros da zona rural do sudeste da Austrália. Ambos embarcam na prova Redex Trial, em 1954, uma dura corrida em volta do continente australiano, por estradas a que poucos carros sobrevivem. Longe de Casa relata esta aventura, pela escrita de Peter Carey, possibilitando ao leitor refletir sobre a colonização, a hegemonia do pensamento branco, o racismo, a apropriação cultural ou a culpa histórica desta grande casa que é o mundo em que vivemos.
É em casa, no nosso lar, que se guarda o maior dos segredos, é nela que os mais excêntricos projetos são rascunhados, os objetos mais amados são arrumados. É a ela que se volta sempre em busca de proteção, conforto, bem-estar físico e emocional. É no regresso a casa que nos reinventamos, que construímos vínculos e alimentamos os repositórios de memórias, da nossa identidade. Às vezes nós somos a casa, verdadeiros abrigos. Neste outono, na comodidade do seu lar, acolha a leitura. Leia. Leia muito. Leia sozinho. Leia em voz alta. Leia a pares. Leia com as crianças. Onde Moram as Casas é uma excelente leitura para conversar com os mais pequenos sobre a casa, pois, se as pessoas moram nas casas, não é menos verdade que as casas moram nas pessoas. As casas habitam em nós.
Por: Plano Nacional de Leitura