Sérgio Godinho: “Muitas vezes, acho que o povo não é nada sábio."
Por: Marta Ribeiro a 2024-04-10
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Sérgio Godinho viveu muitas vidas desde o 25 de Abril, pautadas por “muita música” e “muita mudança do regime democrático”. Tinha 20 anos quando deixou Portugal e foi para a Suíça estudar psicologia — o Porto sufocava-o porque precisava de “ter mundo”, mas garante que de psicologia pouco ou nada aprendeu. Não respondeu à chamada para a Guerra Colonial e partiu para outros voos. Trabalhou na cozinha de um barco e, em Paris, foi parte ativa das revoltas estudantis no Maio de 68. Sabia que, se não fosse a música, seria o teatro ou o cinema, e fez de tudo um pouco. Em Paris, fez parte do musical Hair, que retratava a Guerra do Vietname numa altura em que estava no seu “pico”. Em abril de 1974, estava em Vancouver a ensaiar para uma peça, mas rapidamente se mudou para Portugal porque era neste país plantado à beira-mar que tudo estava a acontecer. Passados 50 anos, continua a dar concertos e a gostar de subir ao palco. O “escritor de canções” abriu-nos a porta de sua casa, dias depois de ter lançado o seu terceiro romance Vida e Morte nas Cidades Geminadas, uma história de emigração, família, amor e identidade, que nasce de um “diálogo insólito […] do qual resulta a geminação de duas cidades”.
Este ano marca os 50 anos do 25 de Abril: estes anos passaram muito rápido ou devagar de mais?
Acho que nem uma coisa nem outra. Passaram-se muitas coisas, mas também muitas coisas na minha vida que, durante esses 50 anos, foi muito preenchida. Não posso só falar objetivamente do país em si. No 25 de Abril, estava em Vancouver. Entretanto, em Paris, já tinha gravado dois discos, Os Sobreviventes e o Pré-Histórias, que foram discos que tiveram uma repercussão grande e que chegaram a ser retirados do mercado pela Censura e depois repostos. Nesse momento, já havia uma decadência geral, eles próprios já não sabiam muito bem o que fazer. E quando houve o 25 de Abril, vim logo, mas voltei a Vancouver porque estava com um grupo de teatro — estávamos a ensaiar uma peça — e depois vim definitivamente, em setembro de 1974. Já estava a preparar um terceiro álbum, que foi o À Queima-Roupa. A partir daí, vivi cá e vivi muitas coisas. Muita música, muita mudança dentro do regime democrático, que é um regime democrático muito imperfeito, é certo, mas não me venham dizer que não é [democrático] porque é.
Para mim, passaram-se muitas coisas, mas prefiro falar em termos de conteúdos. Em Portugal, também se passaram mudanças de governos sucessivos, retrocessos em certas áreas, avanços, não há dúvida de que o aparecimento (já há bastantes anos), por exemplo, do Serviço Nacional de Saúde foi muito importante, mas, por outro lado, não cumpriu tudo aquilo a que, no fim de contas, se propunha. O 25 de Abril foi uma data charneira no estado de Portugal, inclusive acabou uma guerra que era um impasse, que estava a dar cabo de uma geração. Portanto, é uma data que é muito importante na História de Portugal. Para mim, é duplamente importante, porque voltei para Portugal.
Quando foi o 25 de Abril, estava fora já há bastantes anos. Decidiu imediatamente que queria voltar, quando recebeu a notícia?
Não. Por coincidência, tinha uma viagem marcada para ir a Paris, porque não ia poder entrar em Portugal, e, quando cheguei a Paris, já sabia do 25 de Abril. Soube quase logo, embora as notícias fossem muito escassas, porque não havia as “internets da vida”. Depois, telefonei para cá, falei com o meu pai, que era completamente contra o regime, e estava com uma grande felicidade por estar tudo a mudar. Ainda houve umas hesitações nos primeiros dias, mas, quando soube que tinham libertado todos os presos em Caxias… Não se falava da independência das colónias, mas da autodeterminação, percebia-se que algo estava a mudar, e, claro, quis voltar. A minha mulher estava grávida e a minha filha nasceu em Vancouver, em julho. Em setembro, estava a preparar, a compor para o meu terceiro disco, À Queima-Roupa, e pensei: “Eu não estou a fazer nada aqui, eu tenho de ir para Portugal, porque é lá que estão a acontecer as coisas, é lá que tudo se passa”. Esta decisão foi muito rápida, só não foi imediata. Foi imediato para vir cá, mas tive de voltar lá para desfazer a vida.
Estava a falar também do seu pai, que era um homem de esquerda, presumo, contra o regime, e sei que também tem alguns familiares que até estiveram envolvidos na Revolução Liberal do Porto…
O meu bisavô, Miguel Verdial, a quem chamavam, aliás, Ator Verdial (porque era ator), tinha uma voz muito possante, segundo consta. Foi ele quem leu no Porto a Proclamação do 31 de Janeiro, que foi a primeira tentativa de instauração da República, no final do séc. XIX, e foi uma tentativa, vá, chamemos-lhe de golpe falhado. Foi preso e deportado, mas, sim, havia uma tradição já republicana muito forte na minha família, na família do lado do meu pai, e o meu pai também bebeu disso.
E o Sérgio acabou por beber também.
Eu cresci num ambiente em que se falava mal do Salazar, na ideologia.
"Nunca gostei da palavra canção de intervenção, porque acho muito restritivo, não sei o que quer dizer porque intervenção é tudo, ao exprimires-te, estás a intervir."
Como é que passa dessa ideologia para a expressão artística?
Eu acho que as minhas canções são de todo o género, mas eu sempre ouvi muita música e música estrangeira também, inclusive do Brasil. Gente como o Caetano [Veloso] e como o Chico [Buarque], que foram muito importantes e que tinham também uma luta contra o regime. Ter ouvido outros, como as canções francesas, Jacques Brel, Brassens, e também Bob Dylan, nos Estados Unidos. Também no Hair, que falava muito da Guerra do Vietname — nessa altura, estava no seu pico. Portanto, isso foi também moldando a minha maneira de fazer canções. Nunca gostei da palavra canção de intervenção, porque acho muito restritivo, não sei o que quer dizer porque intervenção é tudo, ao exprimires-te, estás a intervir. E pode ser até numa canção de amor ou de interrogação, porque estás a interagir com o que as pessoas pensam. Não é sequer convencê-las, eu nunca me achei um missionário. E não gosto do espírito missionário. As minhas canções cruzam universos porque tenho muitas canções em que ficciono muito, ficciono personagens imaginárias, faço histórias com elas, onde me interrogo muito. Há muitas interrogações nas minhas canções: Que há de ser de nós? Há muitas interrogações, porque acho que as respostas também têm de ser dadas pelos outros. E, portanto, acho que interessa mais isto do que dar respostas todas feitas, enviar aquilo que se chama mensagens. Acho que as pessoas devem ser estimuladas, mas são naturalmente estimuladas ou não. Não é à força, não é com choques elétricos.
“Acho que a canção não tem um papel tão fulcral, mas pode ter um papel de consciencialização.”
Principalmente na altura em que estava fora e Portugal vivia em ditadura, acreditava que podia mudar alguma coisa através da música?
Acho que a canção não tem um papel tão fulcral, mas pode ter um papel de consciencialização. Por exemplo, uma das coisas que eu achei interessante foi quando soldados, alguns até meus amigos mais tarde, que estiveram em Angola ou em Moçambique, mas que levaram cassetes com as canções do Zeca [Afonso], com as minhas, com as do Adriano [Correia de Oliveira], com as do José Mário [Branco], do Manuel Freire, e as mostraram aos soldados. Porque Portugal vivia numa grande ignorância. Aqueles que vinham de uma terra qualquer e iam para a África, acho que nem sabiam o que era Portugal, sabiam que era assim, era assim e ia-se para a tropa naquela idade. Não estou a criticar sequer quem foi, acho que muita gente que foi fez até um papel muito útil. E há o papel de consciencialização, mostrar que há uma outra realidade, mostrar que não é inevitável, mas daí a achar que uma canção pode mudar o mundo, isso não. Acho que há um conjunto de coisas que podem ajudar a pensar melhor, a ter uma maior lucidez. Aquela coisa que se diz: “O povo é sábio"... Não é nada, muitas vezes, acho que o povo não é nada sábio. Há sabedoria popular no povo, isso é outra coisa. Mas, ao nível político, é muito fácil levar-se por ideias, para mim, completamente demagógicas e perniciosas.
“Muitas vezes, acho que o povo não é nada sábio. Há sabedoria popular no povo, isso é outra coisa.”
Esta entrevista foi publicada na Revista Somos Livros (edição Mês do Livro 2024). Leia aqui a segunda parte.