Sérgio Godinho: “Muitas vezes, acho que o povo não é nada sábio."
Por: Marta Ribeiro a 2024-04-11
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Esta é a segunda parte da entrevista a Sérgio Godinho, publicada na Revista Somos Livros (edição Mês do Livro 2024). Leia aqui a primeira parte.
Vamos voltar aqui um pouco atrás, estava a dizer-me que tinha ido para a Suíça estudar psicologia, o que é que estes tempos e estudos lhe trouxeram?
Nada, trouxeram a vontade de fazer outra coisa. Eu queria sair de Portugal e sabia que havia um curso de psicologia, tinha alguns amigos que estavam lá e eu interessava-me pela psicologia. Mas o que acontece é que eu tinha, sobretudo, necessidade de sair e viver autonomamente. De ver por mim. Eu tenho uma canção, que foi a última canção que eu fiz em parceria com o José Mário [Branco], no meu disco Nação Valente, que se chama Mariana Pais, 21 anos e é sobre uma rapariga dessa idade, e começa a dizer “Mariana Pais, diz-me para onde vais, com essa sede de ter mundo?” Eu tinha sede de ter mundo, que é diferente de conhecer o mundo, é ter as experiências de outra vida, de ter universos mais largos. Eu sempre tive um bom ambiente familiar, eu gostava da cidade do Porto, mas, ao mesmo tempo, sentia-me abafado na cidade do Porto, como provavelmente me sentiria noutra cidade. Tinha que ver com a idade e tinha que ver com a necessidade de largar os outros, e foi isso que me moveu. Mas, depois, a certa altura, disse: “Não estou aqui a fazer nada”. E tomei uma decisão para a vida. Larguei tudo e sabia que iria ser por três caminhos: a música, e ainda não compunha, mas tocava, gostava muito da música; o teatro, até tinha estado no Teatro Universitário do Porto, eu gostava muito de teatro, como ator, e, talvez, até de escrever coisas; e o cinema, cheguei a pensar em fazer um curso de cinema no estrangeiro, porque era, de facto, muito interessado pelo cinema, e muito cinéfilo, etc. E também a escrita, fora dessas três artes, mas também se tornou importante. Não teve mais importância do que isso, a psicologia. Eu cheguei a um dia e pensei assim: “É melhor não fazer do que ser um semi conseguido ou mesmo um falhado”.
E também é importante não aprender nada, às vezes.
Eu não acho que tenha aprendido grande coisa, aprendi a viver e aprendi a olhar para as pessoas de outra maneira. Viver num país estrangeiro é muito importante para mim. É que tu olhas para ti mesmo através dos outros de uma outra maneira. Acho que esse olhar que os outros te ensinam é súper importante para pensares em ti mesmo e saberes quem tu és.
E depois da Suíça, foi para Paris logo?
Não, andei pela Europa, trabalhei num barco. Fui [para Paris] em fins de 1967.
Esteve lá no Maio de 68. Como é que isso o influenciou?
Eu estava muito disponível, vivia aquilo mesmo, vivia mesmo na rua, dormi várias noites na Sorbonne, apanhei com gás lacrimogénio. Eu e muitos outros ocupámos a Casa de Estudantes Portugueses, e fizemos lá uma série de fóruns, era um local de elite de estudantes um bocado privilegiados. Todos os dias, ouvia conversas na rua, ou participava também. Depois, cantei em fábricas ocupadas, eu mais o Luís Cecília, o Zé Mário Branco, uma cantora francesa chamada Colette Magny. De qualquer maneira, vivia aquilo sabendo que tudo aquilo era uma coisa efémera, mas, ao mesmo tempo, não sabendo para onde ia — ninguém sabia para onde aquilo ia. Mas foi um acontecimento que deixou marcas na sociedade, não é? Não mudou a sociedade, mas ensinou-me uma coisa. Há uma certa ingenuidade de pensar que as coisas são irreversíveis e não foram, porque houve depois um grande refluxo. Quando eu vim [para Portugal] depois do 25 de Abril, havia uma altura em que se falava das conquistas irreversíveis, eu sempre achei: “ui, já vi disto”. Não quer dizer que tire a importância, mas tem de se relativizar um bocadinho. Digamos que há um pequeno pé que fica atrás, estás ali com os dois pés, mas, ao mesmo tempo, há um pé invisível que fica um bocadinho atrás.
Também foi por volta dessa altura que começou a escrever em português, até lá escrevia mais em francês. O que é que o fez mudar?
Comecei a escrever canções, e comecei também a aprender empiricamente essa arte conjugada de duas coisas, de música e de palavras. E não consegui encontrar uma voz própria, uma voz poética, em português. Soava-me um pouco bacoco. Ou, então, soava a Zeca Afonso. Até que, a certa altura, também já fruto de alguns excessos, percebi que era importante contar tudo isso em português, usar as palavras portuguesas, também pelo peso. Estou a olhar para ali, está uma cadeira. Cadeira, chaise ou chair não evocam as mesmas coisas. Porque cadeira, para mim, pode lembrar-me da infância, a mesa dos almoços em minha casa, ou a minha cadeira do quarto, de estudo, ou dos cafés. Evoca logo uma série de memórias ativas, e, por outro lado, eu, de repente, tive vontade de empregar palavras e frases e expressões populares também.
Que são, muitas vezes, muito musicais.
Também são, é verdade, é verdade. E também senti uma coisa muito conscientemente. É que, ao fazê-lo, cheguei à conclusão que também era uma maneira de eu conservar a minha língua, as minhas origens, eu não queria perder a língua portuguesa, eu adoro a língua portuguesa, eu cresci com o amor da língua portuguesa, porque em minha casa amava-se e praticava-se, lia-se muito. A minha avó, mãe do meu pai, tinha um programa na rádio em que lia poesia. Sempre estive muito ligado a essa riqueza da língua portuguesa e também das expressões. Não foi como terapia, e isto é importante. Pensei: “eu estou a fazer isto porque é a maneira de eu me relacionar com o meu país, as minhas origens, aquilo que eu sou”. Isso foi bom.
Há algum tema, ou temas, que o inspire particularmente?
Sim e não, eu falo da vida, há muitas interrogações, há muitas coisas, há canções de percurso, há canções de amor e de relações, e também de desamor. Pode haver canções que falem do fim do amor, tenho uma canção que se chama O Fim de Tudo e diz "o fim de tudo é um recomeço e olha, eu bem que mereço tratar bem do melhor em mim." Quer dizer, também é um bocado acreditar em si e que as forças se recompõem. Muitas vezes, apetece-me falar de temas sociais. Eu fiz uma canção fortíssima que se chama Fotos do Fogo, que é uma canção em que um soldado mais velho mostra a alguém mais novo fotografias [da Guerra Colonial]. Quando eu penso que os soldados com 20 anos participaram em massacres, e até massacres étnicos — se calhar, está a acontecer neste momento também… E depois vir à tona essa consciência, no caso desse soldado que está a mostrar as fotos a alguém mais novo, “olha aqui eu e tal”, e depois começa a perceber que ele próprio esteve envolvido naqueles horrores. Há uma frase que eu acho que é exemplar nessa canção. "Atrás da cor do sangue, vou seguindo em fila, e atrás da cor do sangue, soldado não vacila." É terrível. Ou há uma canção chamada Domingo no Mundo, em que eu falei do trabalho infantil, que era uma coisa que eu queria falar há muito tempo. Até vou pegar nessa canção agora, nos espetáculos que vou fazer. Outra chamada Dancemos no Mundo, que fala dos casais separados por fronteiras ideológicas, raças, etc. O refrão diz "eu só queria dançar contigo, sem corpo visível, dançar como amigo, se fosse possível". É uma canção de amor, mas também é uma canção política. Não consigo estabelecer um género. Nem quero, não sei em que gaveta cabe isso. É um open space, uma gaveta em que está tudo ao molho.
O Zeca Afonso tem uma frase que uma vez li e ficou comigo. Ele dizia que a revolução cultural não era poder ir tocar a muitos sítios, mas poder ir a qualquer sítio e encontrar música de lá. Acha que essa revolução cultural aconteceu?
Não, acho que isso vira um bocadinho boas intenções. O que eu acho é que há um maior conhecimento da música popular e das formas populares e o Zeca também usou muito isso, mas eu não consigo definir isso de uma maneira tão categórica e concreta. Mas penso também que o Zeca, que era um tipo fantástico e tinha uma coisa genial, foi bastante ideológico nessa altura. O Zeca é uma figura fascinante, porque era inesperado e tinha um humor muito cáustico e, ao mesmo tempo, desmistificava tudo isso. Por exemplo, a frase do Zeca "eu sou o meu próprio comité central" realmente é uma coisa de não alinhamento. Ao mesmo tempo, foi companheiro de estrada de muita gente, inclusive do Partido Comunista, mas era um tipo ferozmente independente ao mesmo tempo.
O PREC foi um período de grande efervescência cultural e um dos objetivos era democratizar a cultura e torná-la mais acessível. Hoje, acha que a cultura está democratizada e é menos direcionada para as elites?
Eu acho que, por um lado, ela está mais democratizada no sentido em que nós vamos a muitos sítios e o acesso a esses sítios em termos de espaços é muito importante. Temos uma rede de teatros municipais, de centros culturais, de auditórios municipais, que é realmente notável e que não existia. Alguns deles feitos de raiz e outros cineteatros recuperados. Isso foi uma coisa que acontece quando o [Manuel Maria] Carrilho era ministro da cultura porque ele fez um trabalho importante a esse nível. Isso quer dizer que eu, por exemplo, vou a tantos lugares com bons espaços e que têm muita ocupação — aí é que está — porque as pessoas tinham necessidade e até uma sede de ir, e são estimuladas e depois isso repercute-se nas próprias comunidades e até iniciativas locais, não só de música, mas de peças de teatro. Nesse aspeto, há muito mais vitalidade e a cultura está, por isso, mais democratizada. Mas, claro, há sempre elitismos e entraves, mas eu acho que não se pode comparar o que existia com o que existe.
Como é que acha que se pode educar para a cultura?
Acho que desde logo é informar, não é? As pessoas saberem, também têm de ser estimuladas, não é só dizer-lhes. Não tenho uma solução mágica, se não também era dos ministérios, eu posso contribuir com opiniões avulsas e com o trabalho que faço.
A Rádio Comercial lançou uma versão d’O Primeiro Dia cantada por vários artistas. E antes disso, há 2 anos, o álbum SG Gigante foi lançado. Como é que se sente ao ouvir outros artistas a cantar as suas músicas e a reinventá-las?
São dois casos diferentes. No caso da Rádio Comercial, foi uma coisa tocante, fizeram uma surpresa total. Achei que foi uma coisa bem feita, até porque reproduz várias capas minhas. O Samuel Úria está numa posição da capa do Canto da Boca. Evidentemente, fico tocado com isso, até porque também mostra empenho e disponibilidade.
É um caso diferente do SG Gigante. Na maior parte das canções, as minhas canções são um ponto de partida para textos próprios, exceto A Noite Passada, em que o Dino d'Santiago canta com a Rita Vian. Foi a Capicua que capitaneou isso e ela conhece muita gente, é muito inteligente e também é grande fã minha, e sobretudo, grande amiga. Acho que é uma experiência interessante e sou muito disponível para aceitar isso. As minhas canções são um ponto de partida para a criação de outros porque, no fim de contas, também é essa a essência da canção. Eu já fui estimulado a fazer as minhas próprias coisas ao longo dos anos pelo trabalho dos outros. Eu já dei este exemplo mais de uma vez, mas, quando saía um disco de Zeca, eu gostava tanto daquilo, que me apetecia fazer não coisas iguais, mas fazer canções à minha maneira. Mais do que uma influência, é um estímulo.
50 anos depois do 25 de Abril, qual é o avanço que tinha a certeza que aconteceria que ainda não foi concretizado? O que ficou por fazer?
Somos uma sociedade imperfeita, não posso dar uma resposta única para isso. Acho que é preciso melhorar a saúde. Aquela canção a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação, a justiça também, mas tudo isso está parcialmente a melhorar e tem de ser melhorado, cada um desses setores.