Entrevista a Nelson e Alex DeMille
Por: Sónia Rodrigues Pinto a 2020-03-27 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
Últimos artigos publicados
É um dos três escritores que mais vendem em todo o mundo. Os seus policiais já venderam mais de 100 milhões de exemplares, chegando ao primeiro lugar do The New York Times. Nelson DeMille prometeu não trabalhar com mais nenhum autor na sua vida – mas abriu uma exceção para o filho, Alex, argumentista e produtor de cinema. Desta parceria resultou O Traidor, uma narrativa repleta de suspense, no coração de Caracas, onde dois agentes da Divisão de Investigação Criminal procuram um desertor do exército americano. Estivemos à conversa com os dois autores e descobrimos a inspiração que originou a perseguição mais arriscada de sempre.
Na introdução de O Traidor, Nelson assume ter prometido nunca mais coescrever nenhuma ficção – com a exceção da sua declaração de IRS. O facto de ter escolhido, como coautor, o seu filho Alex, foi parte da razão para quebrar essa promessa?
Nelson: Sim, foi. Existem muitos aspirantes, e até romancistas estabelecidos, que aproveitariam a oportunidade para trabalhar com um autor bestseller. Mas eu sabia que iria ser difícil colaborar com alguém que não conheço, ou com alguém cujos hábitos e escrita, já definidos, seriam diferentes dos meus.
Pensei que o Alex seria perfeito porque já o conheço, obviamente, mas também por não ser um romancista. Ele é um argumentista. Eu li os seus guiões, vi que ele tinha talento para o diálogo e a noção de como contar uma história. Ele também entende o enredo, as caracterizações e o ritmo. Os ingredientes para um bom guião são, também, os ingredientes para um bom romance, e o Alex estava disposto a aprender como transportar aquilo que ele sabia para um formato diferente. Ele tinha a confiança e a experiência, graças aos seus guiões de sucesso, e isso permitiu-lhe ter uma mente aberta enquanto o ensinei a escrever um romance. Foi mais fácil do que pensámos.
Serem pai e filho torna a coautoria mais fácil e entusiasmante, ou dificulta no processo de tomada de decisões?
Alex: Facilitou em alguns aspectos. Tendo crescido neste ambiente, e ao observar a ocupação do meu pai nos seus vários estágios de desenvolvimento, gostaria de acreditar que aprendi algumas coisas por osmose que foram úteis para esta colaboração. Para além disso, enquanto pai e filho, não éramos dois escritores em fases semelhantes das nossas carreiras. Imagino que isso possa levar a conflitos ou lutas pelo poder. Eu sabia que estava a entrar no mundo dele.
Alex, para além de escritor, é também argumentista e produtor de cinema. Em que medida é que a experiência no cinema facilita – se é que o faz – o processo de escrita? Há uma maior facilidade na visualização da narrativa?
Alex: Os guiões são como mapas para os filmes. Queremos pintar uma imagem para o eventual diretor, ator, cinematógrafo, produtor, entre outros. Se formos bem-sucedidos, conseguimos criar um mundo e uma narrativa que são específicos da nossa visão, sem mostrar demasiado ou acabar por incorrer em extensas descrições das localizações, das personagens ou dos movimentos das câmaras. Esta é uma habilidade que pode ser transmutável para a ficção comercial, onde queremos guiar a imaginação do leitor sem o sobrecarregar com demasiada prosa ou diálogo.
Por outro lado, eu gostei desta tela maior que é o romance. Num guião, uma cena de diálogo com várias páginas é, quase sempre, indulgente. Num romance, conseguimos safar-nos, contando que o diálogo esteja em concordância com as personagens e consiga mover a história.
Nelson e Alex DeMille. Fotografia: Simon and Schuster
Como foi o processo de pesquisa para O Traidor?
Alex: Foi minha a ideia de localizar a ação na Venezuela e o meu pai sugeriu que fosse eu a fazer a maior parte da pesquisa. O meu plano inicial era viajar até lá, mas como a segurança do país se deteriorou, acabei por confiar noutras fontes. Li algumas biografias de Hugo Chávez, e mantive-me a par dos eventos atuais do país. Também criei um mapa de Caracas, utilizando o Google, onde foi possível geolocalizar imagens e vídeos que encontrava, de outras fontes, para me ajudar a descrever a cidade. Mas um dos pontos mais importantes foi ter tido a possibilidade de falar com venezuelanos que me ofereceram uma perspetiva um pouco mais complexa - que nem as notícias americanas, nem a propaganda a favor do regime, me poderiam dar.
Kyle Mercer, o alegado vilão da história, é vagamente baseado em Bower Bergdahl, um soldado do exército dos Estados Unidos que foi capturado pelos Talibãs depois de ter desertado. Como descreveriam Mercer?
Alex: As circunstâncias da deserção de Bowe Bergdahl foram interessantes, mas quanto mais descobríamos sobre o próprio Bergdahl, menos interessante ele nos parecia enquanto personagem. Kyle Mercer é muito diferente. Há paralelos óbvios com Kurtz, de Coração das Trevas, de Joseph Conrad, e Apocalpse Now, o filme de Francis Coppola. Mercer é um militar, de uma unidade de elite, altamente respeitado e qualificado, mas, ao rejeitar o sistema que o criou, torna-se um reflexo desse sistema corrupto. Ele tem muita raiva, justificada, e uma espécie de conflito moral que acaba por mostrá-lo – como acontece com todos os bons vilões – como uma personagem simpática aos olhos do leitor.
Alex, afirma que escolheu a Venezuela como palco para a ação da obra por ser “perigosa e, portanto, interessante”. Tendo em conta a situação social e política do país, que variáveis lhe parecem mais interessantes para a narrativa?
Alex: Achei interessante que um lugar como a Venezuela, com uma abundância de beleza e recursos naturais, pudesse atingir um estado tão miserável. Há uma ironia trágica nisso. De uma forma geral, também considero homens fortes e egocêntricos, como Hugo Chávez, muito fascinantes. Apesar de morto, a sua imagem está em todo o lado, e a ideia daquilo que pretendia para a Venezuela mantém-se viva na política atual do país. O que acontece quando a revolução falha mas as pessoas que deram cabo de tudo continuam no poder? É como se tentassem criar esta miragem - e há muitas pessoas que acreditam seriamente que essa miragem é real.
Qual a mensagem principal que pretendem que o leitor retire, acima de tudo, ao ler O Traidor?
Alex: Pessoalmente, não gosto de tentar transmitir qualquer tipo de mensagem num trabalho de ficção, mas há, definitivamente, grandes temas que são explorados. Mais interessante, para mim, é a forma como um estado de guerra constante tem impacto em cada entidade envolvida, desde os militares, às agências de informação, até aos soldados.
"Mercer é um militar, de uma unidade de elite, altamente respeitado e qualificado, mas, ao rejeitar o sistema que o criou, torna-se um reflexo desse sistema corrupto. Ele tem muita raiva, justificada, e uma espécie de conflito moral que acaba por mostrá-lo – como acontece com todos os bons vilões – como uma personagem simpática aos olhos do leitor." - Alex DeMille, sobre Kyle Mercer
Nelson, qual dos seus livros mais gostou de escrever? E qual diria que foi o favorito dos seus leitores?
Nelson: O livro que mais gostei de escrever foi O Advogado da Máfia (1990). É uma variação moderna de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. Vivo na mesma área onde se localiza a ação do livro, pelo que conheço esse mundo. O Advogado da Máfia é constantemente comparado a O Grande Gatsby em cursos de escrita nas universidades, o que é bastante lisonjeador para um escritor contemporâneo.
Os meus leitores, todos os anos, compram mais Escola de Espiões (1988) - um thriller que decorre durante a Guerra Fria - do que qualquer um outro dos meus outros livros. Continua popular, até mesmo com leitores jovens que não têm memórias desses tempos. Eu próprio deveria relê-lo para perceber o que fiz para o tornar num bestseller durante mais de 30 anos.
O que estão a ler neste momento?
Nelson: Estou a ler A Quadrilha de Rubber (1936), um dos livros de Rex Scout, da saga de Nero Wolfe. Gosto de livros de mistério, incluindo obras de Agatha Christie e Dorothy Sayers, e todas as aventuras de Sherlock Holmes. Todas estas histórias são simples mas com complexas caracterizações.
Alex: Sou um grande admirador de ciência: estou a ler Coming of Age in the Milky Way, de Timothy Ferris. É uma história fascinante sobre astronomia, desde Ptolomeu até à atualidade. No campo da ficção, estou a reler um clássico moderno, Escola de Espiões, de Nelson DeMille. É provavelmente o livro favorito do meu pai, e penso que me poderá dar alguma inspiração enquanto escrevo a sequela de O Traidor, que irá abordar, em parte, a Guerra Fria na década de 1980.
Podemos esperar, então, uma sequela para O Traidor. O que nos podem dizer sobre ela?
Alex: É, de certa forma, uma sequela, uma vez que alguns dos eventos de O Traidor são continuados neste novo livro; por outro lado, é também um livro a solo. Após algum tempo separados, Brodie e Taylore vão encontrar-se novamente, desta vez para investigar o assassinato de um colega, em Berlim. A história vai abordar a comunidade árabe refugiada, o ressurgimento do nacionalismo na Alemanha, e o legado do estado policial da antiga Alemanha do Este.