Isto é a democracia

Por: Elísio Borges Maia a 2021-04-28

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Dor Fantasma, de Rafael Gallo

“As mãos pousam ao piano. Na brancura do teclado, os dedos se deixam deslizar, potentes cavalos-marinhos de volta à água aonde pertencem. Lançada de cima, a luz do palco o divisa da escuridão, abre cortinas por entre as cortinas.” Assim começa a história de Rômulo Castelo, um pianista virtuoso, inteiramente dedicado à busca da perfeição na sua arte. Todas as manhãs, ao acordar, fecha-se na sua sala de estudos e ensaia aquela que é considerada a peça intocável de Franz Liszt, o Rondeau Fantastique. Em breve, Rômulo irá oferecê-la ao mundo, numa tournée pela Europa que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor. 

Pai é…

Pai é táxi, é quem nos leva às cavalitas e nos guia pelas ruas da vida. Segue todas as direções que lhe indicamos com um sorriso no rosto e nunca nos deixa ficar parados em engarrafamentos. Sabe todos os caminhos e tem a melhor banda sonora.

O Dever de Deslumbrar — Biografia de Natália Correia

Talvez não haja, entre tantas outras possíveis figuras históricas nacionais, uma como a de Natália Correia, na forma como esta simbolizou, como poucos, as inquietações do século XX português. Intimidando pela verve de aríete e pela beleza, Natália Correia foi precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada, tendo lançado um olhar oracular sobre o seu tempo. Em tertúlias, que eram verdadeiras olimpíadas da confraternização lisboeta, o seu traço aglutinador envolvia, juntamente com o fumo dos cigarros, intelectuais e admiradores, que se irmanavam com párias e malditos em ideias e poemas de vanguarda.

I redoblen els tambors
I es van encenent els llums
I ja es veu ben clar el camí
I, de cop, ja no fa por.


E rufam os tambores
E vão-se acendendo as luzes
E já se vê bem claro o caminho
E, de repente, já não dá medo.


in Un Sol Radiant, Pau Vallvé

 

Em 2005, o escritor David Foster Wallace iniciou o discurso que dirigiu aos finalistas de uma instituição universitária no Ohio, intitulado “Isto é a água”, com a seguinte parábola: “Dois jovens peixes estão a nadar juntos e cruzam-se com um peixe mais velho nadando em sentido contrário, que lhes acena e pergunta: — 'Bom dia, rapazes. Que tal está a água?' Os dois peixes jovens nadam um pouco mais até que se entreolham e um deles diz: 'Que diabo é a água?'”1. Ser-me-ia fácil gracejar, substituir os jovens peixes por ministros ou deputados… mas não pretendo aqui passar por peixe velho ou por peixe sábio — estou, ainda assim, mais distante deste que daquele. O sentido da história dos peixes, como esclarece Wallace, é este: as realidades mais óbvias e importantes são frequentemente mais difíceis de descortinar e debater. Acredito que o mesmo se passa com a cultura e, sobretudo, com a nossa democracia.

De acordo com o minucioso Diário do contemporâneo de Shakespeare, Philip Henslowe (o proprietário dos teatros Rose e Fortune), entre os adereços e trajes usados na época, havia uma túnica para ficar invisível. Este intrigante adereço não chegou aos nossos dias, mas nesta sociedade imersa nos múltiplos afazeres, dificuldades e distrações do dia-a-dia, e com um número cada vez maior de portugueses nascidos em liberdade (os Filhos da Madrugada), a cultura e a democracia parecem dissimuladas naquele manto de invisibilidade. Supomos que estão lá, no palco das nossas vidas, tomamos uma e outra como adquiridas. No entanto, como adverte o historiador Rui Tavares, “a Democracia é como a saúde mental: para a perderes só precisas de a ter”.2 Dito de outro modo: “reunidas as condições necessárias, qualquer sociedade pode virar-se contra a democracia. Com efeito, a avaliar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo” (Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia, Bertrand Editora, 2020).

 

— 'Bom dia, rapazes. Que tal está a água?' Os dois peixes jovens nadam um pouco mais até que se entreolham e um deles diz: 'Que diabo é a água?'”


É conhecido o momento em que mesmo os peixes mais alheados percebem o que é a água: quando lhes falta. O mesmo se passa com a nossa espécie. No último ano, vimos as nossas liberdades fortemente comprimidas e suspensas as atividades culturais e artísticas: as livrarias, os teatros, os cinemas, as salas de concerto e dança. Nos dois confinamentos decretados, várias atividades foram excecionadas por serem essenciais ao funcionamento da sociedade: venda de jornais e revistas, jogos sociais, animais de companhia, flores, plantas e fertilizantes, ferragens e bricolagem, eletrodomésticos, entre outros.


Diferentemente, as atividades culturais e artísticas — boa parte sem qualquer possibilidade de ser desenvolvida por meios de comunicação à distância — foram obrigadas a encerrar: auditórios, cinemas, teatros e salas de concertos; museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos; bibliotecas e arquivos; galerias de arte e salas de exposições; e livrarias. No mais recente confinamento, a venda de livros foi mesmo proibida nos pontos de venda autorizados a funcionar, que os isolaram com fitas garridas ou removeram dos escaparates3. O Governo decretou, assim, sem oposição visível dos outros órgãos de soberania, que a atividade cultural e artística é supérflua, não é essencial ao funcionamento da sociedade. Somando o período dos dois confinamentos, as livrarias, bibliotecas e arquivos estiveram encerrados 100 dias e os auditórios, teatros, cinemas e salas de espetáculo cerca de cinco meses e meio — mais de 150 dias em pouco mais de um ano! O impacto foi devastador, maior ainda nas artes performativas onde a precariedade é a regra e não a exceção.

 

O Governo decretou, assim, sem oposição visível dos outros órgãos de soberania, que a atividade cultural e artística é supérflua, não é essencial ao funcionamento da sociedade.


Esta posição do Estado não é surpreendente. É coerente com o peso-pluma da cultura nas políticas públicas, nos orçamentos ou nos planos de recuperação da economia — no Plano de Recuperação e Resiliência apresentado este ano pelo Governo são quase nulas as referências ao setor da cultura, na verdade, surge mais vezes como étimo em palavras relacionadas com a cultura da terra (como agricultura ou floricultura) do que a respeito da cultura do espírito. É uma posição coerente — repito. É também profundamente errada. Uma visão estratégica (como agora se diz, com evidente autocomprazimento) que menospreza a cultura é, na verdade, uma visão míope e desfocada, que não enxerga a própria democracia. O professor e filósofo Nuccio Ordine, que gosta de ler a história dos peixes no início de cada ano académico, ajuda-nos a perceber que água é essa tantas vezes despercebida: “Não temos consciência de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a instrução, constituem o líquido amniótico ideal em que ideias de democracia, de liberdade, de justiça, de laicidade, de igualdade, de direito à crítica, de tolerância, de solidariedade, de bem comum, podem conhecer um desenvolvimento vigoroso.” (A Utilidade do Inútil, Faktoria K de Livros, 2016).

 

Sindicato CENA-STE

 

Os bens culturais são essenciais à democracia. Em boa parte do território nacional, especialmente no interior, a democracia está amputada, na medida em que a oferta cultural é incipiente ou inexistente, não há uma única livraria e o cineteatro — quando existe, está encerrado ou sem atividade há décadas. Este é um problema grave, uma outra pandemia que dura há muito mais que 365 dias e com a qual não podemos conformar-nos. Não é um problema das artes de palco, da edição ou das livrarias; dos músicos, atores, bailarinos ou escritores. A falta de condições para a criação cultural, ou para uma oferta editorial diversificada, afeta a qualidade da nossa democracia e compromete o nosso futuro. É o terreno fértil para o que Tom Nichols designou como uma espécie de Lei de Gresham intelectual: se, no passado, a regra era de que “a má moeda expulsa a boa moeda”, vivemos agora numa época em que a desinformação toma o lugar do conhecimento (A Morte da Competência, Quetzal, 2018).

 

@ INDIELISBOA.

 

Isto não significa colocar a cultura num lugar de utilidade social ou, menos ainda, fazer leituras revisionistas do valor das grandes obras da cultura universal em função dessa (in)utilidade social. Como Harold Bloom escreveu há 25 anos: “as obras literárias bem-sucedidas são ansiedades realizadas e não escapes das ansiedades” (O Cânone Ocidental, Temas e Debates, 1997). Significa, antes, reconhecer que, se a arte pode ser um milagre, a produção artística não deveria depender de um milagre; e que as soluções para este défice cultural (e democrático) passam pela modificação de políticas públicas, mas também pelas escolhas de cada um de nós.

Estamos no mesmo barco ou melhor, seguindo as metáforas de Wallace e Ordine, nadamos na barriga da mesma mãe: a democracia.

É escusado pôr mais na carta.
 


1. A alocução de David Foster Wallace — disponível integralmente em https://fs.blog/2012/04/david-foster-wallace-this-is-water/ — foi, uns anos mais tarde, publicada com o título This is Water. Some thoughts, delivered on a significant occasion, about living a compassionate life, Little Brown & Company, 2009.


2. Rui Tavares, em entrevista a Bernardo Mendonça, no podcast A Beleza das Pequenas Coisas (4 de dezembro de 2020).


3. À data em que escrevo, apenas as livrarias, as bibliotecas e os arquivos puderam reabrir, estando prevista a reabertura dos museus, monumentos, palácios, galerias de arte e similares a 5 de abril, e os cinemas, teatros, auditórios e salas de espetáculo a 19 de abril.


Artigo publicado na edição de abril de 2021 da revista Somos Livros. Disponível online ou em qualquer uma das nossas 58 livrarias.

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