Aprendizes do espanto
Por: Bertrand Livreiros a 2023-08-03 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
Últimos artigos publicados
Numa altura em que se realizam em Portugal as Jornadas Mundiais da Juventude, recordamos o primeiro texto “Aprendizes do Espanto”, que integra a obra Elogio da Sede, do cardeal poeta Tolentino Mendonça, onde este reflete, entre outras questões, sobre a necessidade de “tomar a sede como mestra nos caminhos da alma”.
«ESPANTA-TE AINDA», «espanta-te mais uma vez» — é isso que o texto do Evangelho de São João sugere. Nós que, a dada altura da vida, parece que já vimos tudo, já vivemos e sabemos tudo, e olhamos para a realidade protegidos por aquilo que julgamos ser uma distância ou um acumulado saber, somos aqui literalmente desarmados (e desarrumados) pelo espanto. Jesus dirige-se a uma anónima mulher samaritana e faz-lhe um pedido extravagante. Diz-lhe três palavras: «dós moi peîn» («dá-me de beber»). Ela vinha para tirar água e regressar ao povoado, vinha a pensar na sua casa, nos seus afazeres, na satisfação das suas necessidades. Tinha os seus passos mais ou menos calculados, o ir e o vir bem previstos e é surpreendida por aquele pedido e aquele interlocutor.
«Tinha de atravessar a Samaria. Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacob tinha dado ao seu filho José. Ficava ali o poço de Jacob. Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta da hora sexta. Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber.”» (João 4:5-24)
Por muito que isso nos desconcerte são estas as palavras que Jesus nos dirige, na borda do poço que representa este momento das nossas vidas: «Dá-me do que trazes. Abre o teu coração. Dá-me do que és.» Ele quebra o emaranhado de rotinas, cálculos e interditos, mais visíveis ou mais submersos, que atiram a nossa vida para um impasse, ainda que sob uma aparência de normalidade. Rompe com a previsibilidade sonâmbula dos nossos trajetos, das nossas idas e vindas cegas entre a casa e o poço e diz-nos: «Dá-me de beber.» Talvez ainda não tenhamos descoberto que o nosso poço possa servir para isso.
Sendo de condição divina, como explica São Paulo, Jesus não se valeu da forma de Deus, mas esvaziou-se dela para fazer-se servo último e radical da nossa humanidade (Filipenses 2:6-11). E tendo a possibilidade de dispensar o contributo que lhe possamos oferecer, o Senhor diz-nos: «Não te dispenso; eu preciso de ti; dá-me de beber.» Em qualquer estação da vida, e porventura nesta em concreto que vivemos, esse pedido provoca perplexidade e assombro. Invade-nos como um arrepio. Porque nós é que viemos beber; viemos até aqui, rumámos até ao poço para dessedentar-nos. A sede, sabemos o que é. Fadiga e necessidade, conhecemos bem. Nós é que, como diz o profeta, ziguezagueamos de mar a mar, erramos de extremo a extremo, buscando por toda a parte e não encontramos (Amós 8:12).
E agora, vem Jesus dizer-nos: «Dá-me tu de beber.»
José Toletino Mendonça