José Tolentino Mendonça: "Há que não ter medo das perguntas."

Por: Marisa Sousa a 2020-11-26

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Michel Desmurget: “Não encontrei nada para combater os efeitos negativos dos ecrãs que fosse tão fundamental como a leitura”

Depois de, em 2021, ter alertado para o efeito que a exposição aos dispositivos digitais está a ter no cérebro e desenvolvimento das crianças e jovens, no livro A Fábrica de Cretinos Digitais, publicado em Portugal pela Contraponto, o neurocientista Michel Desmurget revela agora que a leitura é o remédio perfeito para combater esses efeitos negativos. No novo livro — Ponham-nos a Ler!, lançado pela mesma editora —, o também diretor de investigação do INSERM (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica francês) dá a conhecer os benefícios de ler, que é, avisa, “muito mais do que juntar letras, é compreender o que se está a ler”. A leitura é fundamental para desenvolver a linguagem, a concentração e a empatia, e para o sucesso escolar e profissional, tal como é importante para compreender o mundo, e não se deixar enganar pela extrema-direita. “Se quiser ajudar os seus filhos, reduza o tempo passado em frente aos ecrãs e fomente a leitura”, aconselha Michel Desmurget.

Guilhermina Gomes: Tudo são temas para debates

São mais de quarenta anos a trabalhar na edição. O que é ser editor? Eu acho que é cada vez mais difícil responder à pergunta «o que é ser um editor». Quando se trata de um editor independente, ou quando se tratava, o editor orientava-se ou por um modelo mais comercial ou por um modelo mais literário. Quando se orientava por um modelo mais literário ou de maior qualidade, deparava com alguns confrangimentos financeiros, claro, dado que a quantidade de leitores era mais reduzida do que na edição comercial. Era e é. Por isso, tinha de arranjar uma série de meios para fazer chegar os seus livros aos leitores através da mobilização de um ficheiro de leitores atualizado e de uma certa fidelidade. Bom. O enfeudamento à banca, para financiar o negócio, nunca deu resultado com nenhum editor. Mas a independência é a independência, e os editores que têm a sua marca dentro de um grupo editorial prestam contas à administração e aos acionistas.

Filipa Leal: “A Humanidade ainda está a aprender a falar, [e] a ouvir.”

Para Filipa Leal, mais do que uma forma de dizer, a poesia é “a melhor forma de ouvir alguma coisa” — por isso, a Humanidade tem muito a aprender com os poetas. Nasceu no Porto, em 1979, e desde que aprendeu a escrever, a escrita tem sido a sua única certeza absoluta. Escreve poesia, contos, argumentos para cinema e teatro, e está editada em Espanha, em França, na Polónia, no Luxemburgo, na Colômbia e no Brasil. Das suas obras mais recentes, fazem parte o conto O Vestido de Noiva (Relógio d’Água, 2024), e o livro de poesia Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano (Assírio & Alvim, 2019), obra finalista do Prémio Correntes d’Escritas e semifinalista do Prémio Oceanos, juntamente com Vem à Quinta-Feira (Assírio & Alvim, 2016).

Partilhamos consigo a segunda parte da entrevista a José Tolentino Mendonça para a revista Somos Livros. Se ainda não leu, descubra a primeira parte aqui


Costuma explicar que a história humana é também a história da procura da beleza e que Jesus, quando desafiou os discípulos a olharem os lírios do campo, mostrou isso bem. Roger Scruton, por exemplo, dedica o seu livro Beleza (Guerra & Paz) à análise da questão, defendendo que a beleza desempenha um papel indispensável na configuração do nosso mundo. Posso devolver-lhe a pergunta que Dostoievski coloca na boca de Hipólito, em O Idiota: haverá uma beleza que salve o mundo?


Platão explicava o impacto da beleza em nós como se fosse uma ferida: "Enquanto se vê a beleza, como num tremor febril, produz-se dentro de nós uma agitação insólita. Assim é quando os olhos recebem o fluxo da beleza. Este fluxo aquece e rega a essência…". De facto, a verdade e o bem não têm possibilidade de atrair a pessoa humana, a não ser que esta se sinta tocada por algo que fere ou que fascina. A beleza é que atrai, faz deslocar o coração, toma e transfigura, rega a essência. A beleza é uma forma de conhecimento autêntico, que precisamos de redescobrir. Por exemplo, parece-me essencial que a teologia, a filosofia, as artes pensem o significado da beleza.


Continua a exercitar o músculo do espanto?


Gosto muito do arranque daquele poema de Alberto Caeiro: "A espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o que é, / e é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, / quanto isso me basta".


Explicou que o seu sentido principal da criação é o ouvido. Este é também uma visão. É de onde recebe o alimento e o estímulo, é o seu "caderno de apontamentos". Escreveu num dos seus livros: “A vida tem a forma de um grito”. Quer criar um movimento para declarar o silêncio património imaterial da humanidade. Gostaria que nos falasse um pouco sobre o seu "caderno de apontamentos" e, já agora, sobre
esta causa.


Estou neste momento a ler um livro de Daniel Heller-Roazen intitulado O Tacto Interno. Arqueologia de uma sensação. A questão que ele enfrenta é a de saber qual o sentido com o qual nos sentimos a existir. O melhor "caderno de apontamentos", tenha ele a forma que tiver, é aquele que regista esse sentimento de que se está a existir.

 

Refere que as perguntas valem mais do que as respostas, são elas que nos salvam. Ilustra-o em O Hipopótamo de Deus (Paulinas) e n’O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal). Utilizou uma expressão que achei maravilhosa: “Uma pergunta é uma máquina de fazer ver”. Estando nós treinados para a cegueira, como chegou a afirmar, estaremos a fazer as perguntas certas?


Da minha experiência posso dizer que as perguntas mais úteis são as inúteis e muitas vezes, como diz um escritor italiano de literatura infantil, Gianni Rodari, “errando se inventa”. Há que não ter medo das perguntas. É preciso multiplicá-las. Pouco a pouco, deixarão de ser óbvias, meras repetidoras da realidade, tautológicas. Pouco a pouco, iniciar-nos-ão em viagens maiores do que aquela que tínhamos previsto. E isso é um grande dom.

 

"Os grandes mestres estão mais perto de nós do que pensamos."

 

N’O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal) diz, a certa altura: “A fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde tudo está assegurado. «Creio porque é absurdo.» Esta insólita frase, atribuída a Tertuliano, tem alguma coisa a ensinar-nos. (…) A fé é um Livro do Desassossego, não é uma zona de conforto.” A fé não é precisamente a procura de garantias e de conforto?


Não digo que a tentação de procurar uma zona de conforto não nos assalte. Mas tarde ou cedo se compreende que a fé é uma radical exposição semelhante ao despojamento, é um caminho trilhado na confiança e não a instalação numa certeza. Por isso, os crentes são mendigos, sedentos, esfomeados, peregrinos. Pensemos em Abraão, que é o pai dos crentes para as três religiões monoteístas: ele representa a história de um reformado que se faz à estrada, de um velho que descobre em si ainda a força de olhar para os céus em vez de trazer os olhos colados aos sapatos, e de enamorar-se de uma promessa.
 

O que podemos esperar dos livros que estão por vir, como o Rezar de Olhos Abertos (Quetzal)?


Porquê um livro de orações? O livro abre com uma epígrafe de Novalis que, de certa maneira, responde a essa questão: “Rezar é para a religião o mesmo que pensar é para a filosofia. Rezar é fazer religião”. Se é assim, a oração não é simplesmente um assunto privado, mas como defendo no livro é um problema político, um assunto de conversa para todos. Trata-se de compreender e experimentar a religião como prática vital e não apenas como teoria ou doutrina. E porquê rezar de olhos abertos? Porque há outras pessoas que abrem esforçadamente os olhos ao rezar, que finalmente os abrem numa tentativa de olhar a vida no seu flagrante espanto, no seu rasgão dilacerante, no seu risco, na sua inteireza e alegria.

 

“Ouvimos muitas vezes dizer que à nossa época faltam mestres. (…) Não sei se faltam mestres ou não à época contemporânea. Se calhar eles existem, mas exprimindo-se de forma inesperada ou incómoda e não queremos ouvi-los.” As palavras são suas. Quem, na sua opinião, são os grandes mestres que nos ensinam a "ouvir com o coração"?


Os grandes mestres estão mais perto de nós do que pensamos. A literatura, por exemplo, é uma grande escola de sabedoria, que nos permite escutar as lições de mestres de todos os tempos. A ideia que agora circula de associar a arte ao entretenimento é um mal-entendido. A arte é uma mistagogia, uma iniciação ao mistério, um despertar.


Se, como acredita, o que nos define são as nossas expectativas, e não o nosso passado, posso perguntar-lhe quais as expectativas que ainda o movem?


O Novo Testamento diz que os cristãos “esperam novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça”. Humildemente, é aí que queria estar.

Dizia Agostinho da Silva que “Quando acabássemos, deviam dizer: morreu um poema”. Esse deveria ser o objetivo da nossa vida. Podia ser um bom epitáfio?


Podia, mas o magnífico poema que foi Agostinho da Silva não morreu.
 

O que gostaria que fosse dito sobre si quando já cá não estiver?
Que perdi tempo a olhar os lírios do campo.

Opinião dos leitores

Os lírios do campo
Beatriz | 08-02-2022
É nas palavras deste grande senhor que descubro tantas vezes o Espanto e o Mistério que trazemos em nós. Que seja assim cada vez que rezamos e nos encontramos com Deus.
Haja Deus !
Joana | 04-12-2020
Sabe bem ler e ouvir, lendo, José Tolentino de Mendonça. A mim, oferece-me renovada vontade de caminhar no sentido da luz, isto é, viajar na vida mais iluminada. Obrigada, é o que me apraz ecoar.
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