José Tolentino Mendonça: "Há que não ter medo das perguntas."
Por: Marisa Sousa a 2020-11-26
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Partilhamos consigo a segunda parte da entrevista a José Tolentino Mendonça para a revista Somos Livros. Se ainda não leu, descubra a primeira parte aqui.
Costuma explicar que a história humana é também a história da procura da beleza e que Jesus, quando desafiou os discípulos a olharem os lírios do campo, mostrou isso bem. Roger Scruton, por exemplo, dedica o seu livro Beleza (Guerra & Paz) à análise da questão, defendendo que a beleza desempenha um papel indispensável na configuração do nosso mundo. Posso devolver-lhe a pergunta que Dostoievski coloca na boca de Hipólito, em O Idiota: haverá uma beleza que salve o mundo?
Platão explicava o impacto da beleza em nós como se fosse uma ferida: "Enquanto se vê a beleza, como num tremor febril, produz-se dentro de nós uma agitação insólita. Assim é quando os olhos recebem o fluxo da beleza. Este fluxo aquece e rega a essência…". De facto, a verdade e o bem não têm possibilidade de atrair a pessoa humana, a não ser que esta se sinta tocada por algo que fere ou que fascina. A beleza é que atrai, faz deslocar o coração, toma e transfigura, rega a essência. A beleza é uma forma de conhecimento autêntico, que precisamos de redescobrir. Por exemplo, parece-me essencial que a teologia, a filosofia, as artes pensem o significado da beleza.
Continua a exercitar o músculo do espanto?
Gosto muito do arranque daquele poema de Alberto Caeiro: "A espantosa realidade das coisas / é a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o que é, / e é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, / quanto isso me basta".
Explicou que o seu sentido principal da criação é o ouvido. Este é também uma visão. É de onde recebe o alimento e o estímulo, é o seu "caderno de apontamentos". Escreveu num dos seus livros: “A vida tem a forma de um grito”. Quer criar um movimento para declarar o silêncio património imaterial da humanidade. Gostaria que nos falasse um pouco sobre o seu "caderno de apontamentos" e, já agora, sobre
esta causa.
Estou neste momento a ler um livro de Daniel Heller-Roazen intitulado O Tacto Interno. Arqueologia de uma sensação. A questão que ele enfrenta é a de saber qual o sentido com o qual nos sentimos a existir. O melhor "caderno de apontamentos", tenha ele a forma que tiver, é aquele que regista esse sentimento de que se está a existir.
Refere que as perguntas valem mais do que as respostas, são elas que nos salvam. Ilustra-o em O Hipopótamo de Deus (Paulinas) e n’O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal). Utilizou uma expressão que achei maravilhosa: “Uma pergunta é uma máquina de fazer ver”. Estando nós treinados para a cegueira, como chegou a afirmar, estaremos a fazer as perguntas certas?
Da minha experiência posso dizer que as perguntas mais úteis são as inúteis e muitas vezes, como diz um escritor italiano de literatura infantil, Gianni Rodari, “errando se inventa”. Há que não ter medo das perguntas. É preciso multiplicá-las. Pouco a pouco, deixarão de ser óbvias, meras repetidoras da realidade, tautológicas. Pouco a pouco, iniciar-nos-ão em viagens maiores do que aquela que tínhamos previsto. E isso é um grande dom.
"Os grandes mestres estão mais perto de nós do que pensamos."
N’O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal) diz, a certa altura: “A fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde tudo está assegurado. «Creio porque é absurdo.» Esta insólita frase, atribuída a Tertuliano, tem alguma coisa a ensinar-nos. (…) A fé é um Livro do Desassossego, não é uma zona de conforto.” A fé não é precisamente a procura de garantias e de conforto?
Não digo que a tentação de procurar uma zona de conforto não nos assalte. Mas tarde ou cedo se compreende que a fé é uma radical exposição semelhante ao despojamento, é um caminho trilhado na confiança e não a instalação numa certeza. Por isso, os crentes são mendigos, sedentos, esfomeados, peregrinos. Pensemos em Abraão, que é o pai dos crentes para as três religiões monoteístas: ele representa a história de um reformado que se faz à estrada, de um velho que descobre em si ainda a força de olhar para os céus em vez de trazer os olhos colados aos sapatos, e de enamorar-se de uma promessa.
O que podemos esperar dos livros que estão por vir, como o Rezar de Olhos Abertos (Quetzal)?
Porquê um livro de orações? O livro abre com uma epígrafe de Novalis que, de certa maneira, responde a essa questão: “Rezar é para a religião o mesmo que pensar é para a filosofia. Rezar é fazer religião”. Se é assim, a oração não é simplesmente um assunto privado, mas como defendo no livro é um problema político, um assunto de conversa para todos. Trata-se de compreender e experimentar a religião como prática vital e não apenas como teoria ou doutrina. E porquê rezar de olhos abertos? Porque há outras pessoas que abrem esforçadamente os olhos ao rezar, que finalmente os abrem numa tentativa de olhar a vida no seu flagrante espanto, no seu rasgão dilacerante, no seu risco, na sua inteireza e alegria.
“Ouvimos muitas vezes dizer que à nossa época faltam mestres. (…) Não sei se faltam mestres ou não à época contemporânea. Se calhar eles existem, mas exprimindo-se de forma inesperada ou incómoda e não queremos ouvi-los.” As palavras são suas. Quem, na sua opinião, são os grandes mestres que nos ensinam a "ouvir com o coração"?
Os grandes mestres estão mais perto de nós do que pensamos. A literatura, por exemplo, é uma grande escola de sabedoria, que nos permite escutar as lições de mestres de todos os tempos. A ideia que agora circula de associar a arte ao entretenimento é um mal-entendido. A arte é uma mistagogia, uma iniciação ao mistério, um despertar.
Se, como acredita, o que nos define são as nossas expectativas, e não o nosso passado, posso perguntar-lhe quais as expectativas que ainda o movem?
O Novo Testamento diz que os cristãos “esperam novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça”. Humildemente, é aí que queria estar.
Dizia Agostinho da Silva que “Quando acabássemos, deviam dizer: morreu um poema”. Esse deveria ser o objetivo da nossa vida. Podia ser um bom epitáfio?
Podia, mas o magnífico poema que foi Agostinho da Silva não morreu.
O que gostaria que fosse dito sobre si quando já cá não estiver?
Que perdi tempo a olhar os lírios do campo.
Opinião dos leitores