"Longa pétala de mar" | Um embarque escrito por Neruda
Por: Sónia Rodrigues Pinto a 2020-07-14 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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A bordo de Winnipeg, ‘o navio da esperança’, mergulhamos no ano de 1939, no fim da Guerra Civil Espanhola, quando mais de dois mil espanhóis se preparam para embarcar rumo ao Chile. Isabel Allende está de regresso com um casamento entre história e ficção, numa viagem que começa pelas mãos de Pablo Neruda, poeta chileno — personagem em destaque na história —, que descreveu o seu país como uma ‘longa pétala de mar, e vinho e de neve’, versos em que a autora se inspirou para o título deste romance.
No coração da Catalunha, assiste--se aos escombros da guerra, pelos olhos do médico Víctor Dalmau, no seio de uma Espanha tão sangrenta que "os camponeses trejuravam que as cebolas eram vermelhas e que por vezes se encontravam dentes humanos no interior das batatas". Dalmau descreve o desespero de um povo que há muito perdeu a noção de país, de partido político, de algo que não a sobrevivência, a partir da chacina que lhe inunda os dias, no hospital onde trabalha. Paralelamente, Roser Burguera, cunhada de Víctor, percorre as paisagens montanhosas dos Pirenéus, rumo às fronteiras onde o refúgio francês viria a proteger milhares de espanhóis que, como ela, procuravam apenas viver. Unidos pelo fantasma de Guillem Dalmau, irmão de Víctor, as duas personagens partilham a intimidade de quem viveu demasiado, em tão pouco tempo.
É um livro feito de cicatrizes e carrega o simbolismo da realidade de quem viveu, em primeira mão, as guerras e revoluções.
Pablo Neruda povoa o romance, tendo Allende recorrido aos seus versos sobre a guerra e às suas declarações de amor ao Chile, para assinalar o início de cada capítulo. Quando Víctor Dalmau e Roser Burguera chegam a França, o poeta é embaixador em Paris. Winnipeg, fretado por Neruda, atraca na vida dos dois espanhóis, enquanto se entoa, num catalão sombrio: “Dolça Catalunya,/ pàtria del meu cor, / quan de tu s’allunya / d’enyorança es mor”.
Depois de partirem do berço da Espanha que os viu nascer, para o mar chileno ‘com as suas torres de espuma branca e negra’, as duas personagens principais são obrigadas a exilar-se novamente, desta feita na Venezuela, depois de uma outra ditadura, sob o comando de Augusto Pinochet, assolar o Chile. Longa Pétala de Mar (Porto Editora), começa no final da década de 1930 e termina em meados do século XX. É um livro feito de cicatrizes e carrega o simbolismo da realidade de quem viveu, em primeira mão, as guerras e revoluções que, na realidade, não são assim tão diferentes de país para país. No fim, pouco sobra se não a inevitável vontade de regressar a casa, essa que tem muitas bandeiras, fronteiras e rostos e que é feita, como versava Neruda, da ‘dura luz que amamos’.
O livro Longa Pétala de mar foi o vencedor do Prémio Livro do Ano Bertrand 2019 na categoria de melhor livro de ficção de autores estrangeiros.