Entrevista | Rafael Gallo

Por: Bertrand Livreiros a 2023-04-26

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Dor Fantasma
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de Amos Oz 
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Michel Desmurget: “Não encontrei nada para combater os efeitos negativos dos ecrãs que fosse tão fundamental como a leitura”

Depois de, em 2021, ter alertado para o efeito que a exposição aos dispositivos digitais está a ter no cérebro e desenvolvimento das crianças e jovens, no livro A Fábrica de Cretinos Digitais, publicado em Portugal pela Contraponto, o neurocientista Michel Desmurget revela agora que a leitura é o remédio perfeito para combater esses efeitos negativos. No novo livro — Ponham-nos a Ler!, lançado pela mesma editora —, o também diretor de investigação do INSERM (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica francês) dá a conhecer os benefícios de ler, que é, avisa, “muito mais do que juntar letras, é compreender o que se está a ler”. A leitura é fundamental para desenvolver a linguagem, a concentração e a empatia, e para o sucesso escolar e profissional, tal como é importante para compreender o mundo, e não se deixar enganar pela extrema-direita. “Se quiser ajudar os seus filhos, reduza o tempo passado em frente aos ecrãs e fomente a leitura”, aconselha Michel Desmurget.

Guilhermina Gomes: Tudo são temas para debates

São mais de quarenta anos a trabalhar na edição. O que é ser editor? Eu acho que é cada vez mais difícil responder à pergunta «o que é ser um editor». Quando se trata de um editor independente, ou quando se tratava, o editor orientava-se ou por um modelo mais comercial ou por um modelo mais literário. Quando se orientava por um modelo mais literário ou de maior qualidade, deparava com alguns confrangimentos financeiros, claro, dado que a quantidade de leitores era mais reduzida do que na edição comercial. Era e é. Por isso, tinha de arranjar uma série de meios para fazer chegar os seus livros aos leitores através da mobilização de um ficheiro de leitores atualizado e de uma certa fidelidade. Bom. O enfeudamento à banca, para financiar o negócio, nunca deu resultado com nenhum editor. Mas a independência é a independência, e os editores que têm a sua marca dentro de um grupo editorial prestam contas à administração e aos acionistas.

Filipa Leal: “A Humanidade ainda está a aprender a falar, [e] a ouvir.”

Para Filipa Leal, mais do que uma forma de dizer, a poesia é “a melhor forma de ouvir alguma coisa” — por isso, a Humanidade tem muito a aprender com os poetas. Nasceu no Porto, em 1979, e desde que aprendeu a escrever, a escrita tem sido a sua única certeza absoluta. Escreve poesia, contos, argumentos para cinema e teatro, e está editada em Espanha, em França, na Polónia, no Luxemburgo, na Colômbia e no Brasil. Das suas obras mais recentes, fazem parte o conto O Vestido de Noiva (Relógio d’Água, 2024), e o livro de poesia Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano (Assírio & Alvim, 2019), obra finalista do Prémio Correntes d’Escritas e semifinalista do Prémio Oceanos, juntamente com Vem à Quinta-Feira (Assírio & Alvim, 2016).

Ao longo de seis anos, Rafael Gallo escreveu Dor Fantasma, a obra que lhe iria valer, em 2022, o Prémio Literário José Saramago. No processo de escrita criou diferentes versões e chegou a pensar em abandonar o seu ofício literário, mesmo já depois de ter publicados vários livros no Brasil, entre eles um romance e um livro de contos. Chega assim ao panorama literário nacional, mantendo o sotaque brasileiro, para se afirmar como um dos mais vibrantes autores contemporâneos. 

Nesta entrevista fala do seu romance Dor Fantasma, da origem das suas personagens e da ligação à música inusitada e, em certa medida, autobiográfica. Elementos que perfazem nesta obra uma crítica pujante ao mundo atual, marcado por lógicas de perfeição e competitividade. O livro conta a história de um pianista virtuoso, que se dedica inteiramente a buscar a perfeição na sua arte, mas também nos outros, e que se prepara para surpreender o mundo com a interpretação daquela que é considerada a peça intocável de Liszt, o Rondeau Fantastique, numa ‘tournée’ pela Europa, que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor. A verdade é que a vida tem outros planos para ele e um acidente deixa-o amputado de uma mão, comprometendo a sua carreira musical e a perfeição que almeja.

De forma ímpar, trata-se de um romance em que a “ânsia de alcançar a perfeição cruza-se com todas as fragilidades humanas”, relembrando as palavras de Pilar del Río, aquando da atribuição do prémio, sobre esta obra que significou para o autor “um novo começo”. Todos carregamos fantasmas, como diz Rafael Gallo, mas é também nesse aspeto que pode estar o impulso para vivermos as nossas vidas, independentemente dos desafios que se enfrentam.

Ao longo dos anos, produziram-se objetos artísticos em que se abordava a questão da busca de um artista pela perfeição. Rômulo Castelo, o protagonista deste romance, pode ser encarado nesse arquétipo.

 

Quando nasceu a ideia de criar este singular personagem?

Na verdade, primeiro veio a ideia de um músico que deixa de sê-lo, por conta de um incidente. Um pianista que sofre o dano contado no livro e, então, perde, mais do que o ofício, a própria identidade. O aspeto da busca pela perfeição foi uma espécie de encontro com outro tema que queria tratar no livro: do quanto o universo masculino tende a se pautar pelo desempenho, como se só importasse ser o melhor, ser o campeão, em qualquer atividade.


Há nele lados antagónicos, que geram pena, mas também antipatia entre os leitores. Em que medida é que podemos encarar este romance como uma crítica e reflexão sobre as consequências da ambição desmedida?

Creio que há esse aspeto da obsessão, que, além da ambição desmedida, tem também o lado da monomania. Quer dizer, não só a pessoa deseja demais algo, como também dirige todo seu desejo somente a isso e cega-se para o resto. Que alguém queria ser grandioso no que faz, para mim, não tem problema nenhum; a questão é o quanto se sacrifica da própria vida — ou da vida de outras pessoas — em nome desse objetivo.


Atualmente, fala-se muito no triunfo da mediocridade nas sociedades. Em que medida é que não podemos constatar também uma crítica social implícita neste romance?

Há, sim, essa crítica, em especial na cena em que Rômulo toma um táxi e o motorista mostra a ela muitas coisas no celular, entre piadas, pornografia e notícias sobre uma manifestação que acaba em violência policial. Para o rapaz, é como se tudo fosse um fluxo infinito de entretenimento, risível, enquanto Rômulo está em uma espécie de meditação sobre a grande arte e a humanidade. Esse choque, em algum grau, faz parte das inquietações de artistas. E acho que, embora não haja uma definição clara do que é medíocre ou não, também é importante nos atentarmos que o avanço do capitalismo e do neoliberalismo, enquanto projetos de consumismo, também agem sobre a cultura, a arte e os comportamentos, a fim de que haja mais ligeireza e descarte, portanto a mediocridade cai muito bem a esse modelo e é produzida em larga escala, estimulada, propagada com imensa força de persuasão.


Dor Fantasma demorou seis anos a ser escrito. Como foi o processo? É uma narrativa que sofreu muitas alterações ao longo do tempo?

Sim, comecei a escrevê-lo em 2016 e tive uma primeira versão pronta ao final de 2019. Mas, então, veio a pandemia e uma série de eventos pessoais que me colocaram em crise, tanto com a escrita quanto comigo enquanto indivíduo. Por um tempo, eu senti que deixava de ser escritor, o que guarda alguma ironia com a própria história do livro. Entre 2020 e 2021 não escrevi quase nada de novo, mas fiz algumas revisões no romance. Sinto que eu precisei me reconstruir nesse momento, do qual saí um novo Rafael. E foi esse novo Rafael que retomou o Dor Fantasma, quando foi divulgado o edital do Prêmio José Saramago 2022, para criar a versão, que agora chega aos leitores e leitoras.


Foi um período também ele marcante no Brasil, sobretudo em termos políticos. Há um lado libertador na forma como surge esta obra?

Sim, foi um período muito difícil, que acredito ter prejudicado a visão sobre o livro, inclusive. Não só da minha parte, como também de quem o leu àquela época. Mas, lançá-lo agora, dessa forma, é duplamente libertador, porque o romance trata de uma figura tirânica e o país se livrou daquela outra no poder. Em paralelo, sinto que minha crise pessoal também foi em relação a uma espécie de Rômulo que havia em mim e do qual, hoje, me sinto mais liberto. 

Toda a narrativa está profundamente ligada à música, que está também presente no percurso do Rafael. Há um contexto biográfico do autor que se reflete no protagonista?

Há mais do que a música, acredito. Embora meus livros lidem com personagens de tipos muito diferentes de mim
 o romance anterior, Rebentar, é sobre a mãe de um filho desaparecido, por exemplo  são histórias muito, muito pessoais. Rômulo encarna muitos de meus fantasmas, com os quais queria lidar.


Vínculos, laços de parentalidade e aspetos da masculinidade fazem parte desta narrativa. Mesmo em 2023 estes elementos ainda parecem produzir grandes reflexões. Chegámos ao momento de desconstruir muitos dos estereótipos relativos ao papel do homem?

Sim, já passou da hora. Esses estereótipos podem ser terríveis, em muitos aspetos. Para quem não corresponde a eles, pode ser torturante e até perigoso (vejamos os casos de espancamento de homossexuais, por exemplo). Também é ruim para quem tem de conviver com figuras que seguem tais estereótipos, como, por exemplo, mulheres que se relacionam com homens que não demonstram afeto, que as violentam, que pouco cuidam dos filhos e da casa etc. Além de tudo, é ruim mesmo para os homens dentro desse padrão hegemónico. Mesmo tendo muitos privilégios e poder, há muito que se perde também, em termos de experiências afetivas, de autoconhecimento ou de liberdade e paz.


A morte do pai de Rómulo parece pronunciar o fim de uma linhagem, mas não é necessariamente assim. Carregamos fantasmas, mas há sempre outros caminhos por desbravar. Também aí surge a questão da identidade. Na subtração  neste caso na partida do pai  existe um espaço de autonomia e de procura por um percurso próprio e único?

Acredito que pode haver, sim, mas também pode ser que esses fantasmas que carregamos, ou a mera falta de outros hábitos, continuem a coibir o aumento da autonomia. Em especial, quando o olhar para as coisas continua o mesmo, o modo de lidar com elas. No caso de Rômulo, por exemplo, ele tem um primeiro impulso de consertar a própria vida, mas como volta a agir sob a mesma chave de antes, os resultados voltam a ser igualmente ruins.


Vivemos numa era em que vários fatores parecem pressionar, sobretudo os mais jovens, a serem bem-sucedidos de forma rápida, como se o facto de isso não acontecer fosse sinónimo de falhanço. Este romance também é uma forma de dizer que nem sempre temos de ser bem-sucedidos, pelo menos como se espera aos olhos dos outros, para ter uma vida feliz e enriquecedora?

Na verdade, eu diria que a própria noção de ser bem-sucedido precisa ser repensada, porque não deveria se referir automaticamente ao trabalho e ao dinheiro, como costuma acontecer no nosso pensamento. Em muitos sentidos, vejo a Marisa como mais bem-sucedida que o Rômulo, mesmo antes do acidente dele. E, claro, sabemos de muitas pessoas que são “bem-sucedidas”, no sentido mais usado da palavra, mas são miseráveis no íntimo.


A epígrafe de Amós Oz parece adquirir importância ao lermos o livro. Há alguma ligação que deseje clarificar?

Creio que seja bem a ideia de se ter alguém que acredita ser um herói, uma figura do bem e da moral, a se destacar, mas, que no fundo é uma pessoa terrível. Essa epígrafe vem do livro A Caixa Negra e é a fala de uma ex-esposa para o antigo marido dela. Nesse sentido, comunica-se também com as questões dos papéis ou posições habitualmente masculinas na família. O personagem daquele livro não é tão tirânico quanto Rômulo, mas é também um homem que não é bom para a família, enquanto se crê perfeito cumpridor do papel dele.


Com o Prémio Saramago ganhou também novos leitores no espaço da lusofonia. Em que medida é que este livro possibilita um novo enquadramento no seu percurso como escritor?

É um novo começo para mim. Não só porque o meu trabalho chega pela primeira vez a outro país, outros leitores, mas também porque eu andava em crise com minha escrita. Cheguei a cogitar não escrever mais ou, pelo menos, por algum tempo. Então, sinto que ganhei de volta também o meu lado de escritor. 

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