Quatro poemas pelo direito à habitação
Por: Beatriz Sertório a 2024-01-10
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Embora tenha ficado atrás de palavras como “inflação”, “inteligência artificial” e “professor”, eleita a palavra do ano 2023 pela Porto Editora, “habitação” tem sido uma das palavras mais repetidas nas notícias e nas preocupações dos portugueses nos últimos tempos. Para Ruy Belo, “uma casa [era] a coisa mais séria da vida”, Manuel António Pina só queria “um sítio onde pousar a cabeça” e Vinicius de Moraes imortalizou em canção uma casa muito peculiar, “não tinha teto/ não tinha nada”, “mas era feita/ com muito esmero/ na Rua dos Bobos/ Número Zero”.
Os quatro poemas que abaixo apresentamos figuram nos livros Livro de Letras de Vinicius de Moraes, País Possível e O Problema da Habitação de Ruy Belo, e Todas as Palavras – Poesia Reunida de Manuel António Pina, e os seus versos poderiam ser transformados em palavras de ordem pelo direito universal à habitação. No dia 27 de janeiro, na primeira manifestação pelo direito à habitação a decorrer no ano de 2024, a poesia sai à rua.
A casa, de Vinícius de Moraes
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero.
in Livro de Letras.
Oh as casas as casas as casas, de Ruy Belo
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei — ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
in País Possível.
Quasi Flos, de Ruy Belo
A morte é a verdade e a verdade é a morte
Tão contente de vento, ó folha que nomeio
como quem à passagem te colhesse,
palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim
do alto da tua inatingível condição
De muito longe vinda, inviável lembrança
indecisa nas mãos ou consentida
por alguma impossível infância
E a alegria é uma casa recém-construída
Face melhor de todos nós, ó folha
dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento,
no calmo outono, o dos primeiros frios, sais
do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema
como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá
Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida
in O Problema da Habitação
Junto à água, Manel António Pina
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.
in Um sítio onde pousar a cabeça (Todas as palavras – Poesia Reunida).