Quatro poemas pelo direito à habitação

Por: Beatriz Sertório a 2024-01-10

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Livro de Letras
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País Possível
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O Problema da Habitação
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Todas as Palavras
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“A Invenção do Amor” – o poema que se tornou um símbolo de resistência à ditadura

Nos 100 anos do nascimento do poeta Daniel Filipe, regressa às livrarias a sua obra mais emblemática. A Invenção do amor, um poema originalmente publicado em 1969, foi lido e relido por várias gerações, declamado por Mário Viegas, filmado por António Campos, que o adaptou ao cinema, proibido pela PIDE e injustamente esquecido. Agora, reeditado pela Editorial Presença, assinala o regresso da coleção “Forma”, e dá a conhecer às novas gerações a história deste amor proibido e perseguido, que se tornou um símbolo de resistência – da poesia e do amor –  à ditadura.

“Poema do amor”, de António Gedeão

No Dia Mundial da Liberdade, um poema sobre o amor:  o “amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso”, “amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,/ que salta, que voa, que vibra e lateja”. Sobre esse amor que rima com liberdade, escreveu António Gedeão, o “príncipe perfeito” a quem Cristina Carvalho dedicou recentemente uma biografia — António Gedeão, Príncipe Perfeito (Relógio d’Água). 

Três poemas para recordar Adília Lopes

O último mês de 2024 trouxe a notícia do falecimento de uma das vozes mais marcantes da poesia portuguesa contemporânea. Nascida Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, a 20 de abril de 1960, em Lisboa, foi sob o pseudónimo Adília Lopes que se tornou conhecida e admirada pelos leitores até ao fim dos seus dias, a 30 de dezembro de 2024.

Embora tenha ficado atrás de palavras como “inflação”, “inteligência artificial” e “professor”, eleita a palavra do ano 2023 pela Porto Editora, “habitação” tem sido uma das palavras mais repetidas nas notícias e nas preocupações dos portugueses nos últimos tempos. Para Ruy Belo, “uma casa [era] a coisa mais séria da vida”, Manuel António Pina só queria “um sítio onde pousar a cabeça” e Vinicius de Moraes imortalizou em canção uma casa muito peculiar, “não tinha teto/ não tinha nada”, “mas era feita/ com muito esmero/ na Rua dos Bobos/ Número Zero”.

Os quatro poemas que abaixo apresentamos figuram nos livros Livro de Letras de Vinicius de Moraes, País Possível e O Problema da Habitação de Ruy Belo, e Todas as Palavras – Poesia Reunida de Manuel António Pina, e os seus versos poderiam ser transformados em palavras de ordem pelo direito universal à habitação. No dia 27 de janeiro, na primeira manifestação pelo direito à habitação a decorrer no ano de 2024, a poesia sai à rua.


A casa, de Vinícius de Moraes

Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero.

in Livro de Letras.


Oh as casas as casas as casas, de Ruy Belo

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei — ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

in País Possível.


Quasi Flos, de Ruy Belo

A morte é a verdade e a verdade é a morte

Tão contente de vento, ó folha que nomeio
como quem à passagem te colhesse,
palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim
do alto da tua inatingível condição

De muito longe vinda, inviável lembrança
indecisa nas mãos ou consentida
por alguma impossível infância
E a alegria é uma casa recém-construída

Face melhor de todos nós, ó folha
dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento,
no calmo outono, o dos primeiros frios, sais
do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema
como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá

Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida

in O Problema da Habitação


Junto à água, Manel António Pina

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

in Um sítio onde pousar a cabeça (Todas as palavras – Poesia Reunida).

 

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