Um poeta em forma de assim
Por: Beatriz Sertório a 2024-12-19
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“Há palavras que nos beijam / Como se tivessem boca”, escreveu O’Neill. Mas as suas, mais do que beijos, foram “um punhal, um incêndio” (Eugénio de Andrade) no coração da “patriazinha iletrada”, de uma certa portugalidade marcada pelas amarras do Regime e do próprio absurdo da vida. Em celebração do centenário de Alexandre O’Neill (1924–1986), recordamos a vida e obra do poeta “caixadòclos”, entre as quais confessou não haver nenhuma distância, apenas uma diferença de intensidade.
Nascido em Lisboa no dia 19 de dezembro de 1924, Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, mais conhecido como Alexandre O’Neill, foi mordido desde cedo pelo “bicho” da escrita — mais tarde, diagnosticado pela sua biógrafa, Maria Antónia Oliveira, como uma verdadeira “doença das palavras” (in Alexandre O’Neill — Uma Biografia Literária). Neto da escritora Maria O’Neill, prima de Eça de Queiroz, cresceu rodeado de livros e cedo começou a colecioná-los. A sua predileção eram os dicionários e até mesmo as listas telefónicas, onde ia buscar palavras para listas e inventários que vieram a alimentar os seus poemas.
Tinha 17 anos quando publicou os primeiros versos num jornal de Amarante (o Flor do Tâmega), mas passaria mais uma década até ser reconhecido como poeta. Até lá, trabalhou como escriturário, empregado de seguros e tradutor, escreveu para cinema, teatro, televisão e rádio e colaborou em inúmeras revistas e jornais, mas foi na publicidade que encontrou o principal ganha-pão. Como redator publicitário, ganhou notoriedade com slogans publicitários como o popular "Há mar e mar, há ir e voltar", criado para uma campanha de prevenção contra o afogamento nas praias portuguesas. Mas o seu humor característico nem sempre foi bem recebido pela polícia dos bons costumes, tendo sido sujeito à censura do lápis azul em mais do que uma ocasião.
Afinal, não seria o primeiro nem o último encontro do poeta com esses agentes do medo, esse que um dia “vai ter tudo / pernas / ambulâncias / e o luxo blindado / de alguns automóveis” (O Poema Pouco Original do Medo). Tendo desenvolvido um interesse pela vaga surrealista que soprava de França, O’Neill aproximou-se de figuras como Mário Cesariny, José-Augusto França, Fernando Vespeira e António Pedro, com quem acabou a fundar, em 1948, o Movimento Surrealista de Lisboa. Daí, surgiu o primeiro livro, o volume de colagens A Ampola Miraculosa, mas também a primeira detenção pela PIDE, provocado por um amor proibido entre o poeta e uma surrealista francesa, que inspirou o poema Um adeus português.
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
Apesar da vigilância da polícia política do Antigo Regime, ao qual se opunha, sem, contudo, subscrever a qualquer partido ou movimento político, O’Neill continuou a sua produção literária e, em 1958, com a edição de No Reino da Dinamarca, é finalmente reconhecido como poeta. A sua permanente atitude irónica perante o mundo levá-lo-ia a autoproclamar-se como “um grande poeta menor”, mesmo tendo sido reconhecido com Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários ainda em vida (1981). E acrescentaria que muitos dos seus versos “nem para atacadores”. Mas a História viria a cimentá-lo como um dos mais importantes poetas portugueses do século XX e uma figura marcante da nossa cultura.
Fazendo do humor a sua arma e de um individualismo feroz o seu escudo, Alexandre O’Neill viveu e escreveu de forma singular até ao último dos seus dias. Morreu a 21 de agosto de 1986, com 61 anos, vítima de um AVC, mas não sem antes deixar uma última amostra do seu espírito mordaz, mesmo além-túmulo. No espólio do escritor, foi encontrada uma nota manuscrita datada de 1981, onde se podia ler “Já cá não está quem falou”, e que viria ser o título de uma antologia póstuma de prosas dispersas.
Embora tenha ficado mais conhecido pelo poema Gaivota, imortalizado na voz de Amália Rodrigues, escreveu também sobre esse animal que, segundo José Jorge Letria no conto «Alexandre O’Neill, o gato e o adeus» (in Amados Gatos) partilha com os poetas “o vício felino de sermos livres, nas palavras, nos gestos, nos silêncios.” Fique com Gato.
Gato
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos
ou teus servos?