Porquê ler Eça em 2025?
Por: Beatriz Sertório a 2025-01-22
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A transladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, 125 anos após a sua morte, reafirmou a relevância intemporal da sua obra. Descrito como um “clássico vivo” por Marcelo Rebelo de Sousa durante a cerimónia de concessão de Honras, Eça permanece como um dos autores portugueses mais lidos, cujos “livros nunca ficaram indisponíveis, têm a qualquer momento peças representadas, poemas antologiados e declamados, são objeto de traduções, trabalhos académicos”, nas palavras do Presidente da República.
Na mesma cerimónia, decorrida no dia 8 de janeiro, Francisco Seixas da Costa, conselheiro cultural da Fundação Eça de Queiroz e antigo embaixador, imaginou como seria se o autor de Os Maias, com o seu acutilante olhar crítico, tivesse vivido na atual era das redes sociais: “Um Eça de Queiroz com um bom blog ou com uma página de Facebook era muito perigoso.” Tendo em conta a atualidade das obras que nos deixou, não precisamos de puxar muito pela imaginação para imaginar o que escreveria. Recorde-o em quatro obras e quatro citações que estabelecem paralelos com os dias de hoje.
O Conde d’Abranhos (1869)
Embora tenha permanecido inédito durante a vida de Eça de Queiroz, O Conde d’Abranhos, escrito em 1869, é um dos textos que melhor reflete o sentido de humor apurado do autor. Com uma ironia ímpar, Eça retrata um político do século XIX, visto através de uma memória biográfica do seu secretário particular e acrítico servidor. Se a figura do Conde poderia facilmente ser associada a um deputado ou governante português do século XXI, a sua exposição de um sistema político alicerçado em bajulações calculadas, discursos ocos e um sem-fim de incompetências, vícios e manhas também encontra paralelos nos dias que correm.
“Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da oposição, com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar a votar com o Governo o empurrarem às coronhadas e às cacetadas, o homem volta-se, puxa de uma pistola – e aí temos a guerra civil. Para que esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem, mas, pelo contrário, acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo ou na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos, metam-lhe uma placa de cinco tostões na mão e levem-no pelo braço, de cigarro na boca, trauteando o Hino, até junto da urna do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é a tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade.”
Uma Campanha Alegre de "As Farpas" (1871-1872)
Nesta obra, reúnem-se as páginas escritas por Eça de Queiroz entre maio de 1871 e outubro de 1872 para As Farpas, a publicação satírica que manteve em conjunto com Ramalho Ortigão. Quando, vinte anos após a sua redação, essas páginas foram compiladas pela primeira vez, Eça escolheu o título Uma Campanha Alegre e justificou-o assim: «Todo este livro é um riso que peleja. Que peleja por aquilo que eu supunha a Razão. Que peleja contra aquilo que eu supunha a Tolice.» O resultado é um retrato vívido da sociedade e da cultura portuguesas da época pelo olhar de um observador exímio, com um dom singular para a ironia.
“O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo!”
Os Maias (1888)
O romance mais completo e brilhante de Eça de Queirós, Os Maias (1888), vai muito além da história do amor proibido entre Carlos e Maria Eduarda. É também uma verdadeira crónica de costumes que retrata, com precisão quase fotográfica e uma boa dose de humor, a sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX. Por meio de personagens inesquecíveis e um uso inigualável da sátira, o autor cria caricaturas universais que continuam a ecoar na contemporaneidade — entre elas, a pequena burguesia mergulhada num cosmopolitismo vazio, a elite política, oportunista e provinciana, e um jornalismo alimentado pela intriga e a calúnia.
“Se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilos, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos de alfândega: e é tudo em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas...”
O Crime do Padre Amaro (1889)
Nesta obra polémica que enfrentou forte contestação por parte da Igreja Católica portuguesa, Eça de Queiroz definiu a sua visão da Arte como uma poderosa ferramenta de reforma social. Através do amor proibido entre Amaro, pároco recém-chegado à cidade de Leiria, e a jovem Amélia, filha da mulher que o hospeda, faz uma crítica incisiva ao clero católico e à sua promíscua influência nas relações domésticas. Se este livro parecia e poderia ser a morte anunciada de uma carreira literária sólida, tornou-se, na verdade, um dos textos centrais da obra de Eça de Queiroz, que prova aqui, mais uma vez, ser a voz da frente na denúncia da hipocrisia dos valores da sociedade portuguesa.
“Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão, continuava o doutor, quando se toma necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis anos que não sabe ainda o b-a-bá tem uma ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias combinadas de Londres, Berlim e Paris!”