John Le Carré. O espião que sonhou ser escritor
Por: Sónia Rodrigues Pinto a 2020-12-16 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
Últimos artigos publicados
Começou a trabalhar para os Serviços Secretos do Reino Unido na década de 1940. No final dos seus vinte anos, na mesma altura em que aprendia os segredos da espionagem com o MI5, começou a escrever ficção. Espião a tempo inteiro, escritor nos tempos livres, John Le Carré publicou o seu primeiro livro em 1961, apresentando aos leitores uma personagem que acabaria por se transformar numa das favoritas, no género de policial e mistério: George Smiley.
David John Moore Cornwell adotou o pseudónimo John Le Carré depois de o seu editor o ter aconselhado a utilizar um nome anglo-saxónico (como Chunk-Smith). Apesar de garantir que não sabe por que escolheu Le Carré, durante muitos anos imaginou uma história sobre uma alfaiataria chamada Le Carré. “Isso satisfez muita gente durante anos. Mas as mentiras não duram com a idade. Sinto uma terrível compulsão pela verdade, hoje em dia. E a verdade é que não sei”, declarou em entrevista ao The Paris Review.
Criado num ambiente difícil, esclarece que não cresceu numa casa repleta de livros. O pai costumava gabar-se de nunca ter lido um livro do princípio ao fim, pelo que toda a educação literária que recebeu partiu das escolas onde estudou. Foi com a literatura alemã que descobriu o verdadeiro prazer pela leitura, durante os seus anos de adolescência. Entre os seus escritores favoritos, figuravam Honoré de Balzac e Charles Dickens.
Em 1950, David Cornwell trabalhou para o exército britânico, interrogando as pessoas que ultrapassavam a Cortina de Ferro, na Áustria. Dois anos mais tarde, voltaria para Inglaterra para trabalhar, em segredo, para o MI5 enquanto estudava no Lincoln College. Enquanto agente do MI5, era responsável por interrogatórios, colocar linhas telefónicas sob escuta e conduzir invasões domiciliárias autorizadas, segundo o The New Yorker.
Foi mais ou menos nesta altura que começou a escrever. Só em 1964 abandonaria a sua carreira como agente dos Serviços Secretos britânicos, dedicando-se à escrita a tempo inteiro.
O INÍCIO DA IMORTALIDADE DE GEORGE SMILEY
Os dois primeiros livros de John Le Carré, Call For the Dead e A Murder of Quality, tiveram um modesto sucesso, mas impulsionaram a fama que George Smiley, personagem principal de grande parte dos seus livros, viria a ter. Foi com O Espião que saiu do Frio, onde Smiley é apenas uma personagem de fundo, que o autor britânico passou a bestseller, descrevendo a história de um agente, nas malhas da Guerra Fria, cuja perigosíssima missão passa por pôr termo à sua carreira de espião.
De acordo com Le Carré, o sucesso deste romance, publicado em 1963, deixou-o surpreendido e um pouco enervado. O manuscrito foi aprovado pelos Serviços Secretos, por o considerarem “pura ficção do princípio ao fim”, não o considerando, por isso, uma violação de segurança. Os meios de comunicação da altura, no entanto, tiveram uma ideia diferente, vendo a obra quase como “uma mensagem do Além” do agente que resolveu escrever sobre a realidade do mundo da espionagem.
O agente George Smiley esteve lado a lado com Le Carré ao longo da sua extensa carreira enquanto escritor. Depois do sucesso de O Espião que saiu do Frio, o autor passou Smiley para o palco principal com a trilogia Karla: A Toupeira, O Ilustre Colegial e A Gente de Smiley. Os leitores do autor britânico achavam que tinham lido sobre Smiley pela última vez em O Peregrino Secreto, originalmente publicado em 1990. No entanto, John Le Carré deu vida à personagem - pensada para ser vista como um anti-Bond -, uma última vez em 2017, com O Legado de Espiões.
Gary Oldman no papel de George Smiley no filme Tinker Tailor Soldier Spy (2011).
A LITERATURA, O CINEMA E A POLÍTICA
As suas obras foram adaptadas para o cinema e televisão, chegando a ser nomeadas para os Emmys, como foi o caso da série The Night Manager (2016), produzida pelos dois filhos de Le Carré, Simon e Stephen Cornwell, e baseada no livro O Gerente da Noite. Outro filme com considerável sucesso foi Tinker Tailor Soldier Spy (2011), adaptado a partir do livro com o mesmo nome, e que teve Gary Oldman no papel do emblemático George Smiley.
Mas não foi apenas no grande ecrã que o autor deixou a sua marca. Em maio de 2019, ao lado de nomes como Neil Gaiman, Philip Pullman ou Robert Harris, John Le Carré assinou uma carta apelando ao voto contra o Brexit, afirmando a sua escolha em nome da Europa. Meses mais tarde, Agente em Campo seria publicado, um policial que espelha o retrato arrepiante da política atual, com especial foco na decisão nacional que levaria o Reino Unido a sair da Europa.
Aos 89 anos, vítima de uma pneumonia, John Le Carré deixou-nos. Connosco, fica um legado que ultrapassou a literatura de espionagem e que chegou à política e ao cinema, do autor que, ainda em vida, nos deixou um aviso: “Uma secretária é um lugar perigoso para se ver o mundo."