“Caruncho” | A primeira “semente de dissidência” a dar fruto
Por: Beatriz Sertório a 2024-03-28
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Depois de se tornar um fenómeno literário em Espanha, Caruncho chega às livrarias como o primeiro título do projeto “Sementes de Dissidência” da editora Antígona. Romance de estreia de Layla Martínez, é o primeiro de cinco livros que irão viajar pelo país ao abrigo do programa Europa Criativa, da União Europeia.
Este projeto surge no âmbito do 45º aniversário da editora Antígona que, desde 1979, tem assumido como missão “empurrar as palavras contra a ordem dominante”, um livro de cada vez. Com o apoio do Europa Criativa — um programa da UE que financia a circulação, a tradução, a distribuição e a promoção de obras literárias europeias —, a Antígona passará os próximos três anos (2024-2026) a espalhar “Sementes de Dissidência” de Norte a Sul do país, com a publicação de cinco livros e diversas atividades em torno dos mesmos.
Caruncho é a primeira semente a dar fruto e já deu muito que falar no país vizinho. Para Belén Gopegui, autora de Fica Comigo Este Dia e Esta Noite, o primeiro romance da espanhola Layla Martínez é um verdadeiro “acontecimento literário”. Já para Alana S. Portero, autora de uma das apostas de 2024 da editora Alfaguara, Maus Hábitos, este é “o livro das miseráveis e infelizes que dizem basta”, evidenciando o carácter dissidente e subversivo que é um traço comum dos cinco livros selecionados para este projeto. Passado no coração de uma Espanha vazia, marcada por resquícios do franquismo, narra o regresso de uma neta, acusada de um crime, à casa rural da família, e aborda questões prementes de classe, violência e solidão.
“Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras, mas a minha mãe saiu daqui há muito tempo e não me lembro dela.”
Semear hoje para colher amanhã
Depois de Caruncho, a colheita continua com Niels Lyhne (1880), um romance de formação do dinamarquês Jens-Peter Jacobsen (trad. Elisabete M. de Sousa), A Parede (1963), um romance distópico da austríaca Marlen Haushofer (trad. Gilda Encarnação); A Pequena Comunista que Nunca Sorria (2014), romance multipremiado da francesa Lola Lafon (trad. Luís Leitão); e, por fim, A Verdade e Outros Contos (1956-1996), do polaco Stanislaw Lem (trad. Teresa Fernandes Swiatkiewicz), um autor que conta já com três títulos editados pela Antígona.
Sendo livros que abordam “temas prementes para tempos incertos”, como a editora os descreve, tal como a ecologia e a consciencialização ambiental, a instrumentalização e a invisibilidade da mulher, a conformidade social ou a luta contra o patriarcado, irão estimular conversas e atividades no espaço público, em comunidades rurais no interior do país, em escolas, bibliotecas municipais e livrarias, entre adolescentes, idosos e grupos vulneráveis, como a população prisional ou mulheres marginalizadas. Para a editora, este é verdadeiramente um programa que pretende semear hoje para colher amanhã, incentivando hábitos de leitura e a formação de cidadãos mais conscientes num país de grandes assimetrias regionais e sociais no acesso ao livro, e numa altura em que aumentam os populismos e os discursos de ódio na nossa sociedade.
Entre as instituições por onde as suas sementes de dissidência irão viajar, contam-se a Aletria – Biblioteca Itinerante (Almada), a Boa Criação (no Projeto de Boca em Boca – Histórias a Nutrir Comunidades, em Corte da Velha, Mértola, em parceria com a Universidade Sénior de Mértola), a Regenerativa – Cooperativa Integral (Odemira), a Livraria das Insurgentes (Lisboa), a Dar a Mão (Lisboa), a Rural Vivo (Campo do Gerês) e projetos artísticos como a estrutura Cassandra. Mas também escolas como a Escola Secundária André de Gouveia, em Évora, a Escola Secundária Emídio Navarro, em Almada, ou o Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa.