Entrevista | Lídia Jorge
Por: Bertrand Livreiros a 2023-01-25
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Na origem de Misericórdia, o mais recente romance de Lídia Jorge, esteve o desejo da sua mãe nos seus últimos meses de vida num lar de idosos. Antes de ter sido uma das vítimas portuguesas de Covid-19, pediu à filha um livro que mostrasse como a compaixão pode imperar no mundo em que vivemos. Uma “situação emocional forte” que levou a autora portuguesa a escrever sobre o último ano de vida de uma mulher, “limitada pelo corpo, mas livre pelo espírito.”
Através de uma escrita onde se mistura ficção e realidade, narra-se a história de dona Alberti (Maria Alberta de seu nome), que foi levada para um "lugar de exílio", deslocada de sua casa para um lar de idosos, o antigo Hotel Paraíso, agora reconvertido. Em resultado disso surge um romance singular e delicado, que reflete sobre a vida de pessoas idosas que vivem em lares e, acima de tudo, sobre formas de amar a vida que segundo a autora honram a própria existência.
Este livro nasceu de um desejo da sua mãe que, de alguma forma, o pediu como forma de evidenciar como a compaixão pode imperar no mundo em que vivemos. Como é que partiu desse desejo externo a si para criar um livro inteiramente seu e que fizesse sentido escrever neste período?
A escrita deste livro não estava no meu horizonte. Como diz, ele surge de uma circunstância muito precisa. Não foi fácil porque resulta de uma situação delicada, mas os livros podem ter origem numa situação emocional forte, como foi o caso, e, no entanto, eles têm de ser escritos sobretudo com a inteligência. Demorei, por isso, a encontrar o ponto de vista da protagonista, a encontrar a estrutura, e sobretudo a reproduzir uma voz. Trata-se do relato do último ano de vida de uma mulher, limitada pelo corpo, mas livre pelo espírito. O que me interessou foi escrever uma história de resistência.
Olhando para a sua temática e, acima de tudo, para a ideia de um espaço como um lar de idosos. Há uma dureza intrínseca à forma como a sociedade olha para estes sítios. Em que medida é que a sua escrita foi motivada por uma reflexão urgente a fazer sobre estes locais e tendo em conta, igualmente, a experiência que viveu de perto com a sua mãe?
Este livro não pretende demonstrar, mas apenas mostrar. Não me interessou que fosse um livro sociológico, mas sim ontológico. Pois se é um livro que mostra formas de resistência perante o envelhecimento e a morte, ele não aponta um remédio. Os profissionais do campo sabem muito bem como alterar as condições em que os idosos institucionalizados vivem. Misericórdia não pretende fazê-lo, esse não é o seu campo. O seu campo é da batalha interior. Porém, devo acrescentar que hoje a velhice não está menos cuidada do que no passado. Em que altura do passado os idosos desfrutaram de condições ideais? Basta ler um pouco da situação num passado não muito remoto. Seja em que situação for, até mesmo um imperador, quando se aproxima o fim da vida tal como a conhecemos, vive um embate. Basta regressar a Marguerite Yourcenar em Memórias de Adriano. Amar a vida até ao último suspiro é uma forma de honrar a existência. Misericórdia é um livro sobre o fulgor da vida e não o seu contrário, vive de energia e não de sentimentalismo.
Cada vez mais, o envelhecimento parece remeter a condições de solidão, abandono e exclusão. Este romance também é de alguma forma um olhar esperançoso contra essa visão? Há neste romance uma tentativa reparadora dessa dura realidade?
Sim, como acabo de dizer, este livro inscreve-se na peugada daqueles que instigam a que a velhice seja vivida com toda a energia possível recusando que a morte seja um fim. O Carlos Fiolhais, numa das apresentações deste livro, associou Misericórdia ao poema de Dylan Thomas, Do not go gently into this good night, e tem razão. Não me lembrei desse poema que clama por raiva, raiva. Se me tivesse lembrado, ele teria servido de epígrafe ao meu livro.
Tantas vezes a literatura fala de pessoas jovens, ainda a dar os primeiros passos na vida e nos seus desafios. Numa entrevista realçou como parece ser mais difícil entrar na mente de uma pessoa idosa e criar personagens. Como encarou esse desafio, precisamente de se debruçar sobre aqueles cuja vida já se encontra num período avançado?
As pessoas idosas não são uma outra Humanidade, como por vezes são encarados. Os idosos, tal como as crianças, somos nós mesmos. A fragância humana é a mesma, embora com modulações diferentes. Quem escreve ficção está habituado a navegar entre os espíritos. Já tenho escrito a partir do ponto de vista de personagens idosas, como é o caso de Ana Mata de O Vento Assobiando nas Gruas. Mas um livro inteiro, escrito sob a voz de uma mulher idosa, é a primeira vez. Não posso dizer que tenha sido propriamente difícil. Não escondo que a figura parte de um modelo vivo e ele era muito forte. Desde que ajustei a escrita a essa voz, foi fácil.
Centra-se no último ano de vida de uma mulher. De que forma é que este livro também projeta as ânsias que sente pessoalmente como mulher, escritora e de análise sobre a condição humana que se enfrenta nos últimos anos de vida?
Há considerações de dona Alberti de que partilho e outras não. Partilho, por exemplo, das mesmas ideias de defesa da honra em viver intensamente, seja qual for o destino que nos espera, e coincido na ideia da partilha com os outros como uma coisa boa, e do princípio da fidelidade como um dever. Partilho ainda da mesma consciência de que a vida humana serve para deixar um sulco vincado na Terra, mais que não seja, um testemunho vivo. A certeza de que a arte e a leitura nos enriquecem porque nos permite ser muitos outros, e isso nos aproxima mais da liberdade. Mas, de resto, trata-se da voz, da esperança, e por vezes da exigência singular sobre si mesma e sobre os outros, muito próprias só da personagem dona Alberti.