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Cadernos do Almanaque da Mó
«As memórias são águas passadas que movem moinhos. No moinho do avô vivia-se uma azáfama permanente e quem chegava não tinha pressa de partir. Da tertúlia às trocas, muito havia para contar. Podiam deter-se demoradamente nas imensas inscrições da oficina das mós. Pelas caleiras, delta artificial da levada, as águas cavavam sossegos e os dizeres imemoriais despertavam consciências perdidas. Tudo o avô preservou. Naturezas e combates, religiões e azedumes, lembranças e desejos. Tudo mensagens afagadas para herança futura. Enquanto esperavam pelo aferir do cereal trazido ou pela contagem e carregamento das sacas de farinha a sair, gerações de moleiros viajantes contribuíram para o painel vivo do casarão das mós de água. Lá deixaram uma espécie de almanaque mural, que o avô retocou religiosamente à medida que as horas foram dobrando, devido à crescente concorrência das novas indústrias panificadoras. No alívio do trabalho, teve a sábia paciência de reavivar os diversos pareceres que os visitantes desdobraram nos paredões crus ao redor das mós. A primeira vez que o jovem Prior da freguesia pôde deliciar-se com a enciclopédia exposta, abençoou o sítio e deu a ideia de se guardar mais seguramente tal riqueza. O avô foi adiando e, por fim, após uma enxurrada mais invernosa minar e abalar uma das velhas paredes de adobe, resolveu seguir o conselho clerical, pondo-se à tarefa escrivã. Nos cadernos recolhidos fica a lucidez, talvez esquecida, de uns e os saberes sentidos, mas nunca perdidos, de outros. Vamos então ler algumas folhas do almanaque da mó?.»
Do Prefácio
Do Prefácio