Sobras Completas
de José Manuel Simões
Sobre o livro
Esta antologia, organizada pelo autor, é a única de JOSÉ MANUEL SIMÕES (Lisboa, 1934 - Paris, 1999), um dos menos conhecidos poetas do grupo do Café Gelo. A sua vida literária foi, sobretudo, feita de traduções, embora tenha dispersado pelas páginas dos jornais colaborações de vária ordem. Procura-se, com este volume, resgatá-lo do esquecimento. Diz Helder Macedo, seu amigo, no Prefácio:
«O JOSÉ MANUEL SIMÕES, como muitos de nós, saiu do irrespirável Portugal desse tempo logo que pôde mas, ao contrário de quase todos, não voltou. Tinha tido em Lisboa uma presença fundamental - e fundadora - no que o Gelo pudesse ter representado e continuou a tê-la em Paris onde o que o Gelo veio a representar alcançou uma expressão cultural que em Portugal não poderia ter tido. A história do Gelo é também uma história de exílios criativos: dos pintores do KWY, de poetas como o Manuel de Castro e o Herberto Helder, que permaneceram exilados mesmo quando regressaram, e do José Manuel Simões, que deu sempre mais do que recebeu, discretamente, intransigentemente, como quem descrê. Teve várias acções importantes em Paris em benefício da cultura portuguesa. Por exemplo, em colaboração com o Fernando Gil, um projecto ao tempo pioneiro sobre Fernando Pessoa que resultou em artigos publicados na imprensa e em programas na rádio que deram atenção à poesia portuguesa. Também teve uma acção política importante e, potencialmente, perigosa, sobretudo em colaboração com os exilados espanhóis associados ao Ruedo Iberico. Em Portugal, ainda adolescente, tinha sido preso e interrogado pela PIDE. Não falou, resistiu aos maus tratos, saiu da cadeia mais livre do que tinha entrado. A não ter de provar nada a ninguém. E assim continuou até ao fim. Foi o mais puro de todos nós.
Foi a ele que o Manuel de Castro dedicou o seu primeiro livro, Paralelo W. E, se me lembro correctamente, foi ele quem sugeriu ao Herberto Helder o título para o seu primeiro grande poema, O Amor em Visita. A escolha desse título é, em si próprio, um brilhante exercício de crítica literária. Com referência implícita à obra de Alfred Jarry, L’Amour en visites, sugere a transformação dessas plurais "visitas" de picaresca demanda adolescente na visitação carnalmente mística de um perene amor para sempre renovado e desde sempre inalcançado no poema de Herberto Helder.
Grande parte das "sobras" deixadas por José Manuel Simões são desse tempo, ou seja, de meados da década de 1950 até meados da década de 1960. São portanto, juvenilia, textos escritos entre os dezanove e os vinte e tal anos, com óbvias influências e convergências literárias (Drummond, Borges, algum Cesariny) mas também manifestando uma voz poética muito pessoal de expectativa sem esperança e de auto-ironia nostálgica, como nos belos poemas da secção do livro intitulada "Ilha deserta - leito vazio":
...
Poderei distribuir por todos o amor que em mim sobeja
por não ter terra onde pousar.
...
Azul nos teus seios por causa do frio,
meu amor pintado de azul,
meu amor tido e inventado
...
Quero que morram de fome
as palavras entre nós.
...
Quem pode saber
que as minhas mãos têm
dois buracos escavados
para receber os teus seios?
...
Falo hoje de lágrimas
como de um fenómeno puramente físico.
Por vezes, alguém no mundo se encarrega de desenterrar pérolas. Eis-nos perante uma delas. José Manuel Simões foi uma espécie de exilado do famoso grupo do Café Gelo, por onde passaram, no rastro do surrealismo português, poetas como Herberto Helder e António José Forte. Num volume graficamente irrepreensível, as diferentes secções deste pequeno livro resgatam-nos para o que há de fundamental na poesia. Mais ou menos experimentais, adoptando/subvertendo esquemas rímicos diversos ou em verso livre, mas sempre cuidadosamente cadenciado, por vezes em prosa, os poemas de José Manuel Simões denotam uma independência criativa e uma autonomia existencial absolutas. O amor e a solidão são temas recorrentes, quase como pólos de uma poesia capaz de se questionar em tão enigmática quão irónica condição.