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Sobre o livro
Quem quisesse vê-lo era tentar encontrá-lo numa qualquer livraria ou, com mais certeza, no alfarrabista da Rua Nova da Trindade.
Era baixo, encorpadito nos seus setenta e cinco anos feitos, de voz quase desconhecida.
Os óculos usava-os a tempo inteiro, e luvas. O cabelo ia em ondas brancas, curtas, da frente para trás, no cimo da testa alta e terminando numa virinha ao começar do pescoço decorado com fino lenço azul de seda vindo da Síria.
Os olhos eram pequenos, verdes e tormentosos, emoldurados pelas grandes armações de extinta tartaruga de Timor por onde há muito tempo atrás havia passado numa expedição botânica com um amigo doutor falecido.
Aí mesmo, no secreto duma noite de chuvada tropical, descobriu o que passou a ser daí para a frente: um bibliófago.
O desamparo é uma das características marcantes em muitas das personagens de "O Bibliófago e Mais Historietas Breves", colectânea de contos a merecer muito mais do que ficar esquecida nas estantes atoladas das livrarias. Abel Neves tem vastíssima obra dramática publicada e levada à cena, sendo também autor de livros de poesia, ficção narrativa e ensaio. É um dos nossos mais relevantes escritores vivos, pelo que não se compreende o relativo esquecimento a que parte da sua obra tem sido sujeita. Os contos coligidos em O Bibliófago são apenas mais uma prova da sua destreza narrativa, focados em personagens geralmente verosímeis cuja genuinidade não estorva o extraordinário.