Avenida da Liberdade, N.º 1
de Luís Serpa
Grátis
Sobre o livro
Palavras repescadas pelo marinheiro e blogger Luís Serpa.
«""Avenida da Liberdade, nº 1"" é um condensado de posts do blogue Don Vivo dos anos 2004 a 2007.
Este Don Vivo descende em linha recta de um outro Don, tão nosso conhecido: tal como no romance de Cervantes, o título nomeia a personagem e a obra. Não será, assim, abusivo colar a estampa de marinheiro experimentado a um certo Luís Serpa, crescido em Moçambique e que, a partir de tenra idade, passou a vaguear por mares e terras do mundo inteiro. Mais: este vagamundo anda também em busca da sua Dulcineia, esteja ela onde estiver, seja ela quem for (por vezes é só um «tu»), acontecendo frequentemente tratar-se de uma cidade, de um país, de um lugar, de um ambiente.
Percorrendo os mares, Don Vivo percorre, experimenta também, diversos géneros literários — da citação (sim, da devida apropriação de palavras exemplares!), do aforismo, do diário até ao conto e mesmo ao romance em folhetins. Não nos espantemos, pois, com a vasta bagagem literária e cultural do nosso herói que conhece por dentro autores, música, pintura, fotografia, cinema que, tal como numa vida bem vivida, maneja com sobriedade e sem exibicionismos.
Assim, no meio da noite se vai o nosso herói aventurando pela escrita adentro e as palavras correm-lhe fluidas e em catadupa, a fazer lembrar uma outra Peregrinação. Está só, à procura da chave que lhe indique o caminho, e, talvez por isso, com a ânsia que todos temos de partir em busca do fim do nosso rumo, se leia este livro tão sofregamente.» Joana Morais Varela
Cegonhas
Passei uma grande parte da minha vida a treinar cegonhas. Ensiná-las a voar mais alto, mais depressa e com maior capacidade de carga. Queria alugá-las a senhoras cujo desejo fosse ter gémeos. Para os treinos usava garrafas de champanhe trazidas não de Paris mas directamente de Champagne, de Reims. A cada voo mais uma, em menos tempo. A coisa deu um resultadão: as últimas viagens já vinham com uma caixa de Magnum cada uma delas (já só tinha três. As outras quinze morreram, umas atropeladas por aviões outras abatidas por caçadores. Duas morreram de cirrose no fígado. Infelizmente não consegui vendê-los para foie gras. Os produtores sabem distinguir os fígados das cegonhas dos de patos e gansos).
O problema é que não encontrei futuras mamãs que acreditassem que os bebés vêm de Paris no bico de uma cegonha. Eu tinha previsto, forçoso é dizê-lo, a enorme vaga de gémeos que estava para vir. Não contei foi com o cepticismo das pessoas em relação a estas verdades do passado. A esmagadora maioria das futuras mamãs não acredita que os bebés vêm de Paris em bicos de cegonhas.
Peguei nas que sobreviveram e dei uma chaminé a cada uma. Assim podiam fazer os ninhos à vontade. Ficavam à frente do gabinete do ministro do Turismo, que as contratou para fazer fotografias dos ninhos e das crias quando as tivessem. Tornaram-se funcionárias públicas, com aqueles salários de assessor que todos nós conhecemos e ainda davam umas aulas de degustação de champanhes por fora. Ficaram ricas.
Eu fui trabalhar para um jardim zoológico. Comecei nas aves, claro, mas pedi para mudar mal eles (os manda-chuva) tiveram confiança em mim. Fui para os macacos. Fodido por fodido mais vale sê-lo pelos primos. Assim ao menos fica tudo em casa.
Ficava: agora estou reformado. As cegonhas que treinei chatearam-se da função pública e abriram uma empresa de entregas ao domicílio. Às vezes contratam-me para limpar os armazéns. Pagam-me directamente, sem papéis nem IVA nem mais nada. Vai do bico para o bolso.
Agradecem-me muito, são muito gentis comigo, pagam-me na ponta da unha e ainda deixam uma boa gorjeta. Gosto muito delas. Qualquer dia morro.