Sobre o livro
A China, que hoje vemos como uma super-potência em ascensão, nem sempre foi um colosso mundial. De facto, durante milhares de anos, a história chinesa é uma sucessão de ferozes lutas pela supremacia entre muitos estados e reinos. Ascensão e Queda dos Impérios relata-nos um desses grandes períodos de convulsão, que viria a terminar na unificação da China.
Numa narrativa verdadeiramente apaixonante, descobrimos o fausto das cortes, as tramas dos ministros e as épicas batalhas entre grandes exércitos, bebendo da boca dos sábios pensamentos milenares que fizeram da China o que hoje é.
Uma obra raríssima em língua portuguesa e que enriquece o panorama editorial português, abrindo ao grande público uma janela indiscreta sobre o misterioso e sedutor gigante do Oriente.
Prefácio
1. As batalhas de que este livro trata não fazem parte do nosso imaginário colectivo. Nunca delas ouvimos falar, nem serviram para resolver diferendos que de algum modo nos tenham motivado ou afectado.
Aljubarrota, disse-o João Gouveia Monteiro, foi para a história medieval portuguesa "a mãe de todas as batalhas". Waterloo, confirmando o que em Leipzig se havia já desenhado, desfez o sonho napoleónico de reconquista da hegemonia e abriu uma nova era nas relações entre as potências europeias. Gettysburg, com a qual se quis promover interesses mas também valores, pode ter decidido o destino de uma grande nação, então ainda em construção e que hoje ocupa o primeiro lugar, em capacidade económica e militar, no concerto internacional. Dien Bien Phu, premiando o apego a uma causa mobilizadora e a vontade de vencer apesar das enormes dificuldades, forçou a capitulação dos franceses na Indochina, anunciou a derrota dos norte-americanos no Vietname e terá sido uma referência exemplar, como tão oportunamente relembra José Alberto Loureiro dos Santos, para todos os que, no século passado, se envolveram em guerras de libertação.
Em contrapartida, Mingtiao e Chengpu, entre outras de que nesta obra se fala, foram travadas antes de Cristo nascer, é certo, mas acima de tudo numa terra demasiado longínqua e por um povo que durante muito tempo não soubemos sequer que existia. Podemos então ser levados a admitir que pouco ou nada terão para nos ensinar.
2. Acontece, porém, que alguns dos homens que conduziram estas batalhas, ocorridas em terras distantes e desconhecidas, assim como os que, nessa altura, nelas encontraram o melhor dos substratos empíricos para o estudo da coacção e do antagonismo, começaram a reflectir sobre aquilo a que hoje chamamos estratégia, e a escrever sobre ela, e a tentar perceber como poderá um tal domínio do saber contribuir para a obtenção de superioridade em contextos de natureza conflitual, ainda antes de no Ocidente se ter cunhado a palavra.
T'ai Kung, a quem se atribuem Os Seis Ensinamentos Secretos, terá pintado caracteres no bambu, para transmitir o resultado das suas experiências de sucesso nos domínios da estratégia subversiva e da estratégia do fraco ao forte, no final do século XI a.C. E Sun Tzu, nos treze capítulos d'A Arte da Guerra, por volta do século VI a.C., lança as sementes daquilo que muito mais tarde se designará por estratégia integral e estratégia indirecta.
Ao mesmo tempo e não menos relevante, tal como estes, outros clássicos estratégicos e militares chineses, que viveram e escreveram na época em que os confrontos que esta obra retrata se integram, são bem ilustrativos da cumplicidade que nestas paragens se estabelecia entre o fazer e o pensar, e para a qual T'ai Kung, por muitos considerado o primeiro grande estrategista-general, terá servido de paradigma. Veja-se o caso de Wu Ch'i, posteriormente conhecido por Wu-tzu, que na passagem do século V para o IV a.C. comandou sucessivamente os exércitos de três Estados (Lu, Wei e Ch'u), saindo sempre vitorioso das batalhas que liderou, e que nos legou um sóbrio e lúcido tratado, eminentemente realista, contendo, entre outras considerações, valiosos conselhos acerca da conquista e da preservação de vantagens estrategicamente decisivas.
Esta cumplicidade entre o fazer e o pensar levaria ao desenvolvimento de teorias da acção, simultaneamente descritivas (o que aconteceu), explicativas (por que razão aconteceu desta e não daquela maneira) e prescritivas (o que deveria ter acontecido para que os resultados fossem favoráveis e, portanto, o que se deverá fazer no futuro). À vertente prescritiva dos sistemas teóricos concebidos por estes ilustres estrategistas de antanho têm inúmeros líderes políticos, militares e empresariais dedicado nas últimas décadas uma atenção que vai crescendo de forma imparável.
Muito curioso é, sem dúvida, o tremendo impacto que as ideias dos clássicos chineses da estratégia têm tido no exigente contexto da rivalidade entre empresas que competem em mercados vincadamente concorrenciais. Curioso, ou nem tanto. É que o interesse dos que gerem o desempenho de tais empresas pelas obras desses autores resultará, nem sempre mas em grande medida, de uma tomada de consciência que se vem paulatinamente afirmando e que consiste no seguinte: as principais linhas de força do pensamento estratégico não conhecem fronteiras; donde, vale a pena reflectir sobre o que se fez nos campos de batalha para perceber o que deve ser feito em áreas de negócio e segmentos de mercado. (Infelizmente, em Portugal, a preciosa herança que nos foi transmitida por notáveis pensadores da estratégia militar é frequentemente encarada com aquela grosseira sobranceria que brota do atraso e da ignorância. Em países com economias altamente competitivas, lê-se Clausewitz e estuda-se a operação Tempestade no Deserto em diversos centros de excelência para o ensino da gestão, mas isso é já outra conversa).
Em definitivo, no arco de tempo que os autores desta obra elegeram como referencial, e precisamente nessa China imensa das transições dinásticas e, no período dos Estados Guerreiros ou dos Reinos Combatentes, das rivalidades intensas entre senhores feudais, surgiram duas das que considero serem as três mais importantes escolas do pensamento estratégico, a saber, as da estratégia subversiva e da estratégia indirecta, cujos pais fundadores foram, respectivamente, os já mencionados T'ai Kung e Sun Tzu. (A terceira das mais importantes, esta sim nascida da experiência europeia, por sua vez submetida ao exame rigoroso do labor reflexivo prussiano, é, naturalmente, a do pensamento clausewitziano).
3. Ao lermos as histórias que estas batalhas nos contam tomamos contacto com uma sabedoria profunda e subtil, não apenas acerca dos modos de fazer a guerra, mas se calhar principalmente acerca do modo como os homens a devem percepcionar e como nela se devem comportar. Nalguns casos, o conhecimento inspirador que daqui se desprende antecipa em quase três mil anos as descobertas que os ocidentais, à custa de um percurso muito doloroso, acabariam, também eles, por fazer. Noutros, assume-se como adquirido aquilo que em muitas partes de um mundo culturalmente sofisticado e ao fim de tantos anos parece não se ter ainda aprendido.
Tendo em conta o que aconteceu no Iraque, uma vez ultrapassada a primeira fase da guerra ainda em curso, poderá alguém ficar indiferente à postura adoptada por Le Yi, por volta de 280 a.C.? Sendo um homem "extremamente versado em estratégia", no rescaldo de uma grande e bem sucedida ofensiva que lançou contra o Estado de Qi, administrou "o território ocupado com virtude e justiça". Porque sabia que "recorrendo apenas à força, não conseguiria conquistar o coração do povo de Qi", depois de submeter o adversário e de se apoderar da quase totalidade do seu território, empenhou-se em "vestir e alimentar as suas gentes", de tal forma que "o povo já não o via como um agressor nem tinha qualquer razão para combater e recuperar as terras que o Estado perdera" (Cf. Capítulo 5: Um regresso dramático).
No cerne desta postura encontramos uma ideia que os maiores chefes políticos e militares chineses interiorizaram e que foi aliás usada como suporte dos movimentos subversivos que provocaram a derrocada dalgumas dinastias: a necessidade de governar com rectidão e benevolência, e de criar riqueza no interior das fronteiras, para que assim aumente a coesão social e, por via dela, a comunhão de interesses, a capacidade de mobilização e a unidade de esforços; mas também, havendo guerra, a necessidade concomitante de proporcionar boas condições de vida, materiais e espirituais, às populações dos Estados subjugados, mostrando-lhes, através de uma prática governativa assente em realizações concretas, o muito que terão a ganhar com a mudança de soberano.
Como resulta claro de várias passagens desta obra, tornar um Estado globalmente poderoso significa, não apenas fortalecer o seu exército, como desenvolver a sua economia e pôr em marcha reformas políticas, de maneira a que os interesses do povo sejam acautelados e o seu apoio assegurado; por outro lado, os vencidos, pelo menos os não combatentes, devem ser tratados com deferência e não desprezados, devem ser cativados em vez de hostilizados.
4. Seria deveras fastidioso, e até despropositado, enumerar e a seguir traduzir para a linguagem contemporânea da estratégia, neste prefácio, tudo o que de mais significativo estas Histórias de Guerra da China Antiga têm para nos oferecer. Para além do mais, retirar-lhe-ia, a si, que tem o livro na mão, o prazer da pesquisa e o desafio da interpretação.
Limitar-me-ei, por isso, a salientar três aspectos que, segundo creio, se revestem de grande actualidade, estrategicamente falando.
Desde logo, na quase totalidade dos confrontos descritos nesta obra pressente-se o desejo de conferir prioridade a uns quantos instrumentos de coacção distintos do militar. Entrar em guerra é um assunto de formidável gravidade, pelo que a questão tem de ser cuidadosamente ponderada.
Ora, as manobras clandestinas no seio da estrutura de poder do adversário, que se empreendem com o intuito de o desgastar, no essencial psicologicamente, visam, em primeiríssima análise, enfraquecer o seu potencial estratégico, mas se forem executadas com superior mestria poderão minar por completo a sua apetência pelo combate. No limite, o que se pretende é forçá-lo a deixar cair as armas antes da batalha começar.
E as manobras diplomáticas, que por vezes são tantas e tão intrincadas que chegam a confundir-nos, visam, claro está, reforçar o potencial estratégico dos que as promovem, mas são quase sempre levadas a cabo com o fito de colocar o adversário numa posição insustentável, no sentido em que o prosseguimento do confronto se lhe afigure demasiado arriscado. Mais uma vez, o que se pretende é demonstrar-lhe que deve desistir antes que a opção pelo instrumento militar seja feita.
Quer as manobras clandestinas, com consequências essencialmente psicológicas, quer as diplomáticas, com consequências fundamentalmente dissuasoras, e mais ainda se tomadas em conjunto, tendem a remeter o instrumento militar para o papel de facilitador (a ameaça do seu emprego credibiliza os restantes instrumentos) e de opção derradeira (a ele se recorre depois dos outros falharem). É este o terreno que viabilizará o despontar da noção de estratégia nacional, perspectivada como estratégia integral.
Em segundo lugar, são poucas as batalhas aqui relatadas em que o segredo e a dissimulação, o logro e a astúcia, enfim, os estratagemas engenhosos, não se destinem a cumprir um objectivo nuclear que é o de desgastar moralmente o adversário. Induzi-lo em erro, fatigá-lo e incutir-lhe um estado mental de profundo desânimo são procedimentos aos quais em muitas situações se atribui primazia, sendo este o terreno no qual germinará a possibilidade do menos poderoso, em meios materiais ou tangíveis, vencer o mais poderoso.
Assim se explica por que razão foram os chineses os primeiros a teorizar sobre a essência e os limites da chamada "estratégia do fraco ao forte". E assim se compreende o seguinte episódio: ministros de vistas curtas afirmaram que "desde tempos imemoriais o grande tem derrotado o pequeno e a nação forte tem conquistado a nação fraca", ao que Xie An, com a tranquila convicção de quem possui sageza bastante, respondeu, "Na história, há muitos casos em que os pequenos derrotaram os grandes" (Cf. Capítulo 11: A Batalha de Feishui).
Por último, surge nestes relatos uma tensão aparente entre duas ideias: a de que a batalha deve ser meticulosamente planeada e a de que qualquer plano entrará em colapso assim que se inicie a refrega. Digo aparente, já que a tensão se resolve distinguindo o "antes" e o "durante": antes do embate, o planeamento não só faz falta como é imprescindível na óptica da geração, da mobilização e da activação de recursos; durante o embate, não há plano que resista.
Digamos que quando o choque de vontades antagónicas se concretiza, o planeamento tem de dar lugar à estratégia. A expressão "planeamento estratégico" é, portanto, um oximoro, isto é, incorpora termos que se contradizem. Cao Gui, que "lera muitos livros sobre estratégia e que era um homem de grande talento", sustentaria que "no campo de batalha a situação pode mudar a todo o momento" e que, por conseguinte, "os comandantes devem ser flexíveis" (Cf. Capítulo 3: A Batalha de Changshuo).
A lógica do planeamento, fundada na programação, no controlo e na optimização, quando aplicada à dinâmica da conflitualidade ou da competitividade, pressupõe que se fixe uma trajectória, que se detectem os desvios e que se introduzam no sistema as medidas correctivas que o obrigam a retomar o caminho predefinido. Fazer estratégia, em contrapartida, é estar disponível para mudar de trajectória sempre que as circunstâncias se alteram, é saber escolher um caminho radicalmente inovador sempre que necessário, é aceitar a incerteza e tentar responder em tempo real ao inesperado que inevitavelmente emerge da dialéctica de acções e reacções em que se mergulhou.
A dinâmica da acção estratégica pede qualidades da alma que não são as de um planeador; decorre num quadro de instabilidade e de imprevisibilidade intrínsecas que nenhum plano consegue domar; processa-se entre sistemas complexos adaptáveis que interagem de forma não-linear e que, por esse motivo e entre outras particularidades singulares, estão sujeitos ao fenómeno das pequenas causas que produzem grandes efeitos.
Song Yi, que se tinha a si próprio na conta de um grande perito em "planeamento militar e estratégico", "vestido num quente casaco de peles", bebia e regalava-se com banquetes, enquanto as suas tropas passavam fome e frio, confusas pela sua indecisão e desmoralizadas pela sua arrogância (Cf. Capítulo 7: A Batalha de Julu). Noutro azimute, Zhao She, que ao contrário do seu filho Zhao Kuo não era um estrategista de poltrona que facilmente se deslumbrasse com os encantos do planeamento, e que em caso algum se deixaria ludibriar pela sua suposta valia estratégica, afirmaria: "Comandar um exército é uma tarefa perigosa. Mesmo quando elaborados com o maior cuidado e diligência, os planos têm sempre falhas" (Cf. Capítulo 6: A Batalha de Changping). Clausewitz dirá que "os planos são bons até ao momento em que se inicia o combate; a partir dessa altura as decisões passam a ser tomadas em função dos acontecimentos".
5. Não deve ser dado como garantido que as onze batalhas seleccionadas para esta obra sejam, de facto, as mais relevantes para o esclarecimento dos eventos que indelevelmente marcaram a história política e militar da China antiga. Mu-yeh e Ma-ling, por exemplo, não merecem referência.
Mas a primeira, em 1045 a.C., confirmou o derrube de uma dinastia com sete séculos, a dos Shang, e colocou no poder o pequeno mas determinado reino dos Chou (Zhou), inaugurando-se assim uma nova dinastia que perduraria até que, passados oito séculos, a unificação e a centralização autênticas fossem alcançadas com os Ch'in (Quin).
E a segunda, em 341 a.C., foi um momento crucial de viragem nas lutas intermináveis que por essa altura opunham os sete Reinos Combatentes na disputa pela supremacia, ditando a quase total aniquilação do exército de Wei pelas tropas de Ch'i (Qi), o que abriu caminho a uma alteração irreparável dos equilíbrios prevalecentes e, feitas as contas, ao brutal enfraquecimento de Han, ao desaparecimento de Wei e à lenta mas inexorável ascensão de Ch'in.
Em ambas foram postos à prova, com um sucesso retumbante, os métodos preconizados e os procedimentos recomendados por dois eminentes estrategistas: T'ai Kung, ao serviço dos reis de Chou, na de Mu-yeh, e Sun Pin, supostamente um descendente de Sun Tzu, ao serviço do Estado de Ch'i, na de Ma-ling.
Em todo o caso, não sendo a obra que o leitor agora folheia um compêndio de história militar chinesa, a opção dos autores deve ser entendida como resultando do desejo de repescar aqueles conflitos que, na sua avaliação, terão proporcionado os ensinamentos mais expressivos. E os que melhor se prestam a uma narrativa de sabor exótico e agradavelmente instrutiva como a que as próximas páginas encerram.
Setúbal, 16 de Março de 2005
Francisco Abreu