Poemas Ocasionais
de Fernando Miguel Bernardes
Grátis
Sobre o livro
VOZ A ECOAR PELAS QUEBRADAS…
Dizem-se «ocasionais». De ocasião. Como suspiro d’alma que se dá, de quando em vez, perante o inusitado, ao ler uma frase sentida, ou, mesmo, diante do rumo ziguezagueante de uma Humanidade ora, cada vez mais, a desmerecer inicial maiúscula.
Voz a ecoar pelas quebradas. Um rio. Já o imperador romano Marco Aurélio escrevia ser a vida qual rio torrentoso: mal acabas de ver a folhinha flutuante, ei-la que já lá vai e, em seu lugar, outra vem, em jeito de abalada. E importava parar.
No parque duma cidade ergueram monumento ao ancião: um banco igual ao banco onde ele passava as tardes a ver as águas gorgolejar, a ouvir as aves trinarem ao desafio: «O octogenário / sentou-se / num tronco / a meditar» (p. 75).
Para aí voou meu pensamento, ao saborear estes «poemas ocasionais».
Para um rio:
lavou avós lavou netos
regou no campo o esparteiro
rendilhou de verde os fetos
da cerca do fazendeiro (p. 24).
Para a Natureza:
na várzea dos olmos
os estorninhos
mostram-se esquivos:
sobem aos fios
e pousam
espreitam
em redor
receiam desafios (p. 74).
Para a humanidade sem inicial maiúscula. A meter bem fundo o dedo na ferida, para que sangre deveras:
de armas na mão
e drones no ar
sem tripulação
e sabem matar
corpo-computador
frio e desumano…
quem o manipula
diz-se um ser humano (p. 72).
Por isso, há
montes maninhos
verduras
transgénicas
frutas maduras
de intervenções
polémicas (p. 65).
Por aí vamos, embalados ao ritmo do soneto ou de rimas mais libertas, envoltas sempre, porém, numa suavidade que encanta.
Fazemos nosso o libelo contra os parasitas:
«Vérmina - disse o doutor, ao ser pelo doente consultado; vermes - disse o eleitor, ao ser, pelos que elegeu, parasitado» (p. 90).
Lamentamo-nos, evocando o Coriolano de Shakespeare:
«Eleito a falsas promessas, este no comando agora - ai, ai, Coriolano!... - eis, por fim, tudo às avessas, os cidadãos ao engano!» (p. 81).
Sentamo-nos ao relento com o sem-abrigo, a ver a Lua: «Tu tens uma cama quente», diz ele, «e a mim o que me ajuda é um travo de aguardente!» (p. 14).
Sonhamos ser o «construtor da habitação por vir, sem cerca ou alão de prevenir», porque «de todos tudo é e abundante será!» (p. 66); e sorriremos, confiantes de que, um dia, o «clarão aberto» vai mesmo deflagrar (p. 70), qual sereno desabrochar de «rosa rubra na lapela sobre o peito» (p. 92). Cumprir-se-á, assim, uma «última vontade», porque, entretanto, «da tundra ao Tibete», tu «disseste ao meu ouvido: ‘Amo-te!’» «e, do deserto, a cheiro a menta se evolou aos cumes mais elevados»… (p. 79).
É assim a poesia de Fernando Miguel Bernardes - na perspicaz atenção crítica ao que o rodeia. E as suas palavras são sibilantes flechas certeiras; o objectivo: pôr de novo inicial maiúscula na palavra Humanidade, ao lado de uma outra, que com ela deve rimar também: a Liberdade!
José d’ Encarnação