À Conversa Com
de Isabel do Valle
Grátis
Sobre o livro
Por detrás da imagem de figura pública, inerente ao mundo artístico, estão pessoas e percursos de vida. O presente conjunto de entrevistas — cuja selecção deriva, sobretudo, dos conhecimentos pessoais da autora e da disponibilidade daqueles que aderiram ao seu projecto — é uma primeira concretização da tarefa com que Isabel do Valle se propôs valorizar o mundo artístico, dando-nos a conhecer, numa abordagem intimista e personalizada, alguns dos seus intervenientes.
Nestas entrevistas procura-se abeirar o lado pessoal de cada um dos interlocutores, tendo sempre como pano de fundo um olhar sobre a vida, os valores, as convicções, as aprendizagens e as opções que fazem parte do caminho vivencial de cada um. Não é assim de estranhar que, neste primeiro volume de entrevistas, o discurso dos entrevistados extravase o plano do trabalho profissional e incida sobre questões que a todos igualam no plano humano, porque a todos se impõem no confronto com a vida.
Ao valorizarem a dimensão humana, mais do que a imagem mediática de cada entrevistado, as conversas reunidas neste livro lançam um outro olhar sobre aqueles que estamos habituados a conhecer através dos meios de comunicação de massas. Um olhar que, revelando-nos afectos, percursos de vida, hábitos e opções, nos traz uma dimensão pessoal que geralmente não nos é acessível, contribuindo, simultaneamente, para que nos sintamos mais próximos daqueles que de algum modo deixam a marca da sua referência na nossa memória colectiva.
TEXTO DE APRESENTAÇÃO (LISBOA, 26/2/2007)
Um dia, não se sabe exactamente em qual, mas corria o ano de 2006, uma artista alfacinha agora residente no Algarve, resolveu partir em busca dos seus pares e afins, levando na bagagem, para além de uma simpatia congénita e ouvidos de escuta apurada, uma mão cheia de perguntas.
Confessou-me que não sabe bem como tudo aconteceu.
Que um dia, não sabe bem por força de que energias, partiu e foi falar com pessoas.
Levava o coração cheio de vontade de dar — apesar das perguntas que iam na algibeira — e o sonho, ainda enevoado, de poder de alguma forma ser um elo de aproximação e reunião de pessoas que de certo modo vê como família.
Dados os primeiros passos, que é como quem diz, gravadas as primeiras entrevistas o sonhado projecto começou a ganhar corpo.
Foi-se então dedicando aos penoso trabalho de transliterar as entrevistas do suporte áudio em que foram registadas, procurando tornar escorreita a forma escrita em que seriam apresentadas.
E persistiu no sonho, que é como quem diz, continuou as entrevistas, muito ao sabor das possibilidades que conseguia concretizar, muito na contingência da multiplicação dos contactos que se iam avolumando e sempre acarinhando cada entrevistado que juntava a uma lista que já se tornava extensa.
Foi no dia 28 de Junho de 2006 que conheci pessoalmente a Isabel. Tínhamos falado pelo telefone, mas ela insistiu em marcar uma reunião com o editor e em vir apresentar pessoalmente o seu projecto.
Disse-lhe, mais tarde, a propósito dessa momento, que me tinha entrado um «furacão pela porta». E a analogia é exacta.
Incansável na forma de lutar pelo seu projecto, com um coração do tamanho do mundo e com a determinação das grandes mulheres, pusemos mão ao trabalho, seleccionando, corrigindo, idealizando a capa e o formato, enfim, cuidando ao pormenor de tudo.
O sonhado projecto tornara-se agora uma gravidez que gestava com o tempo. Não foram precisos os nove meses, apenas oito. E o «rebento» — como a partir de então lhe chamámos — não nasceu prematuro. Teve o tempo necessário para amadurecer o sorriso com que se quis tornar público. E, eis-nos aqui, pela mão da Isabel do Valle com um projecto que do sonho passou à realidade.
Mas, contada em termos breves a história que originou este livro, vejamos agora o próprio livro nas caraterísticas que mais o identificam.
Ele agrega um conjunto de 45 entrevistas que a Isabel do realizou durante o ano de 2006 a diversas figuras públicas, na sua maioria artistas, e representa o primeiro passo de um projecto que eu sei que a autora gostaria de ver continuado em outros volumes de entrevistas e com outros entrevistados.
Em linhas gerais as entrevistas tem o propósito de nos dar a conhecer um outro lado dos entrevistados.
Todos são personalidades públicas que se destacaram no mundo das artes da comunicação social, da cultura e que, de um ou de outro modo, entraram na constelação das referências da nossa memória colectiva.
São conhecidos do grande público pela sua actividade profissional, pelo seu empenhamento para com a cultura e pela notoriedade dos percursos que foram desenvolvendo.
No entanto, não é a dimensão de notoriedade pública aquela que a Isabel explora nestas entrevistas. Pelo contrário, ela prefere aguardar nos bastidores e conversar com os seus interlocutores num plano em que estes se mostram como pessoas entre pessoas, com percursos individuais concretos, com vivências, com valores, com lutas, com balanços positivos e negativos, com desabafos, etc. — ou seja, num plano em que revelam a sua humanidade.
Parece-me, com efeito, que uma das características destas entrevistas é a abordagem extremamente humana que a Isabel imprime às suas conversas e o modo como, através das suas perguntas, acaba por desocultar um lado mais pessoal da vivências dos entrevistados no aquém da sua actividade profissional.
Não é assim de estranhar que encontremos uma moldura filosófica no seu modo de perguntar e que faz do horizonte amplo do sentido da vida o quadro de referência mais importante para a escuta dos seus entrevistados.
Parece-me que é precisamente isso que passa na maior parte das questões que recorrentemente são colocadas nestas entrevistas. Deixem-me dar-vos algumas pistas.
A questão da vocação.
Assumindo que no universo dos entrevistados a questão da vocação é decisiva — e de facto, parece ser um dado mais ou menos pacífico que só pela força de uma vocação e de uma sensibilidade específica se persiste em ser artista e culturalmente interventivo e dedicado — fala-se nestas entrevistas no modo como se descobrem as vocações, nos caminhos mais escorreitos ou mais tortuosos da sua afirmação, das dúvidas, dos riscos e das decisões que em torno da força de uma vocação se podem gerar. A questão da vocação liga-se a duas outras, que são a do talento e da inspiração. Será que o talento é inato, será que é fruto de conquista pelo trabalho, será que está ligado a predisposições naturais aprofundadas pelo trabalho? E a inspiração, de que resulta ela? Poderá a inspiração ser preparada? Poderá a espontaneidade ser potenciada? E quando falta a inspiração mas se tem de apresentar trabalho? O que nos conduz a uma outra questão.
A questão da ligação à profissão.
De que modo se encara a profissão quando se é artista, figura pública ou agente de cultura? Terá de haver um fundo de intensa paixão? Como é que se persiste num caminho em que as certezas quanto ao trabalho e ao seu retorno são a maior parte das vezes precárias? O que faz com que se continue num rumo profissional que não oferece garantias, que exige constantemente aprimoramento técnico e criativo e em que cada trabalho é um projecto e um desafio? O que leva a optar por essa forma de vida, que insistência a norteia, que devoção? E, nos momentos de balanço, que força faz persistir, mesmo na ausência de reconhecimento e de compensações económicas? Como é que cada um se relaciona com a forma de vida que ser artista é? O que nos conduz a uma outra questão.
A condição do artista profissional em Portugal.
Numa sociedade em que o economicismo leva a quantificar todos os valores, que condições de vida têm aqueles que promovem valores espirituais, que educam para a cultura e para a sensibilidade, que procuram reconduzir o olhar para formas que potenciam o crescimento humano e que estimulam o seu apuramento? Num mundo em que a educação tende cada vez mais a reduzir-se a um adestramento para a produção e numa sociedade em que a viabilidade económica se tornou estação primeira na ponderação de qualquer projecto, como são acolhidos e tratados os artistas? Sentem-se apoiados ou vêem-se numa eterna cruzada quixotesca? A sua profissão é socialmente acolhida e valorizada, ou têm de rumar sempre em contramaré, numa luta a retomar em cada dia, num esforço apenas alimentado pelo sonho? No caso específico de Portugal, como é que neste país se sentem tratados os artistas, que condições e oportunidades lhes são, ou não, proporcionadas, que expectativas nutrem? A esta questão liga-se uma outra recorrentemente referida nestas entrevistas, e que é a do significado do aplauso. Regra geral, podemos verificar que para os profissionais das artes, o aplauso é o nutriente por excelência da sua actividade profissional, a manifestação de apreço que faz sentir que, apesar de tudo, vale a pena continuar a fazer do trabalho um meio de oferecer e de levar algo aos outros. Mas, se o aplauso tem um significado enorme e reforça o espírito dos profissionais, o facto é que ele nem sempre significa um reforço na mesa familiar em que se partilham as refeições ou uma disponibilidade acrescida de apoio material aos que amamos… Como é ser, e como vivem, os artistas em Portugal? O que nos leva a duas novas questões.
O que move estas pessoas, como encaram a vida?
Trata-se de uma pergunta de fôlego amplo que abre para as mais diferentes respostas e colocações. A tal dimensão filosófica que atrás referi emerge explicitamente aqui. Que sentido tem a vida? Que sentido e orientação trabalha nos gestos quotidianos que se aglutinam nas semanas, nos meses, nos anos? O que polariza o movimento e a persistências dos percursos que cada um desenvolve? Que referencialidade última enquadra um percurso de vida? O que nos leva a outra questão.
E nos momentos difíceis da vida, a que é que nos agarramos? A que valores? A que objectivos? A que convicções? A que força? Uma vez mais a pergunta incide naquele nível que a todos torna iguais, mas permite desocultar a especificidade das incidências de cada entrevistado.
No mesmo sentido, vão as perguntas sobre o modo de lidar com a solidão, com o envelhecimento ou com a morte.
Em jeito de balanço, quero dizer-vos que na maneira como coloca as perguntas e orienta as entrevistas, a Isabel revela uma grandeza humana assinalável, grandeza que ressoa nas respostas dos entrevistados. Não é pois o lado da ostentação e da vaidade que a Isabel alimenta. Pelo contrário é sempre com os olhos postos numa humildade que, ao mesmo tempo que todos torna iguais, permite simultaneamente abeirar a singularidade de cada um. E isso significa uma imensa capacidade de amar e de acarinhar. E este livro é também um profundo acto de carinho, nutrido do júbilo e do orgulho de valorizar as pessoas que nele são entrevistadas.
Finalmente, o livro representa um importante testemunho, algo que lega uma compreensão mais humana e íntima de muitos daqueles a quem só conhecemos o lado público e para quem a mediatização da imagem acaba muitas vezes por interditar o olhar outro que repara que o mais valioso é, afinal de contas, ser-se pessoa entre pessoas, pessoa para pessoas, ou, em suma, caminho partilhado no cuidado dos afectos, dos valores e dos crescimentos. Esse é o espírito destas entrevistas, essa a hospitalidade genuína da Isabel do Valle.
Rui Grácio