Enfrentar o medo com elegância poética
Por: Marisa Sousa a 2020-08-04
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Numa entrevista ao Correio Braziliense, em abril, Mia Couto, biólogo e poeta moçambicano, quando questionado sobre o espaço da poesia em tempos de incerteza e sobre se o medo poderia ser enfrentado com 'elegância poética', afirmou que a poesia poderia ser boa aliada em tempos de pandemia, acrescentando que, se esta ”constituir uma visão alternativa do mundo, e não apenas uma forma de arte, então ela terá poderes para enfrentar este mundo”. “Às vezes, tudo o que resta é a palavra”, concluiu. E foi com palavras e poesia que muitos quiseram vestir os dias em que, confinados, assistiam ao medo e à morte a fazerem manchetes nas televisões — a fazer lembrar os seres descritos por Platão, na sua alegoria da caverna, que vislumbravam apenas uma ténue sombra da realidade projetada nas suas paredes. Foi a alimentar os sonhos a poesia (“Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer.”, Natália Correia) que muitas esperas se tornaram suportáveis porque, acreditamos, tal como Juan Ramón Jimenez, que “A poesia, como deus, como o amor, é só fé.”
“LISBOA DE PESSOA ALEGRE E TRISTE / E EM CASA RUA DESERTA / AINDA RESISTE”
A 18 de março de 2020 foi declarado, em Portugal, o estado de emergência. Três dias depois, a 21 de março, o Dia Mundial da Poesia era celebrado de forma bem diferente do que aconteceu em anos anteriores. Para assinalar a data, o poeta Manuel Alegre partilhou, na sua página no facebook, um poema dedicado a Lisboa “com praças cheias de ninguém”, que a cidade “ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste” e, que apesar de tudo, “ainda resiste”. O poeta José Jorge Letria também assinalou a data, divulgando um poema inédito que conta que: “Esta ausência não foi por nós pedida / este silêncio não é da nossa lavra / já nem Pessoa conversa com Pessoa / com o feitiço sempre imenso da palavra.”
UM VÍRUS “ENTRE NÓS E AS PALAVRAS”
Depois de encerradas as portas do Pinguim Café, a mais famosa e antiga tertúlia de poesia do Porto foi transmitida em live streaming. Os responsáveis pelas tertúlias afirmaram não permitir que o vírus se interpusesse entre eles e as palavras e desafiaram as pessoas a encherem a cave virtual com a partilha de poemas e canções. “As noites nunca têm uma temática, correm livres e ao sabor da inspiração e das vontades dos participantes. Assim será também esta noite”, garantiu Rui Spranger antes da realização da primeira sessão virtual. Entre os poemas e excertos que se afiguravam como pertinentes, Spranger destacou, entre outros, um d’Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena, que diz a certa altura “Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém / vale mais que uma vida ou a alegria tê-la. / É isto o que mais importa — essa alegria.” e a última frase de A Invenção do Dia Claro, de Almada Negreiros: “Só faltava uma coisa, salvar a humanidade”. (Visão)
Sessão Pinguim - Poesia em casa
“HAVEMOS DE IR AO FUTURO”
A 12 de abril, as ruas desertas do Bonfim, no Porto, erguiam a esperança e as promessas de futuro, usando a poesia da Filipa Leal.
“(…) Havemos de ir juntos ao futuro / ou se não houver boleia para todos ao mesmo tempo / havemos de nos encontrar lá./ Havemos de ir juntos ao futuro e no futuro estará finalmente tudo como dantes” (in Vem à Quinta-Feira, Assírio & Alvim).
“O PORTO EMBALADO PELO CANTO DAS SUAS JANELAS”
20 de abril. Um poema escrito à janela cresceu e fez-se ponte entre duas desconhecidas (Público). Rossana Ribeiro, num “acto de desespero”, colou na janela do seu 3.ª andar, no centro do Porto, a mensagem: “Olá, como estás?”. Uma das respostas que recebeu foi a de Ana Neiva, que na janela do seu 1.º andar afixou a mensagem: “Olá, vai ficar tudo bem. Vizinhos top.” Rapidamente o diálogo tomou forma e o desafio nasceu: “Fazemos um poema?”. Nascia assim, a quatro mãos, um poema escrito por duas desconhecidas. “O Porto adormeceu / Embalado pelo canto das suas janelas” foram os primeiros versos e muitos se seguiram daí para a frente. A métrica e o ritmo pouca importância têm quando a poesia, tal como disse Ferlinghetti, é “a distância mais curta entre duas pessoas”.
Bonfim. Porto, Abril 2020.
E É TAMBÉM À JANELA QUE SE COMEMORA A LIBERDADE
Sem possibilidade de realizar as tradicionais comemorações do 25 de abril nas ruas, como é hábito, e em pleno estado de emergência e com algumas das liberdades restringidas, a celebração da liberdade ganhou uma pertinência relevada. Um pouco por todo o país, as vozes saíram às janelas e varandas para entoar Grândola, Vila Morena. Em Vila Franca de Xira, um grupo de moradores juntou-se para ler os poemas da liberdade aos portugueses confi nados em casa. Na Covilhã, a Câmara Municipal lançou a iniciativa “Poetas da Liberdade”, partilhando diariamente poemas alusivos à Revolução dos Cravos e à liberdade, da autoria de Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Jorge Letria, Zeca Afonso e José Carlos Ary dos Santos.
© Sic Notícias
PARA ESPANTAR A MORTE…
Clube dos Poetas Vivos
No início do confinamento, rapidamente nos começámos a aperceber de que tudo passava a acontecer online. O difícil começou a ser, a partir de determinado momento, escolher entre a torrente de acontecimentos que, à falta de ruas e palcos, de esplanadas e teatros, de restaurante e cinemas, passaram a estar ali tão perto, na palma da nossa mão. O ser humano, entre outras coisas, tem a incrível capacidade de rapidamente se adaptar às circunstâncias. O Clube dos Poetas Vivos, iniciativa realizada em parceria pelo Teatro Nacional D. Maria II e pela Casa Fernando Pessoa desde 2016, não parou. Os encontros, em torno dos poetas e das suas palavras, passaram a acontecer semanalmente online. “Bem queríamos que este fosse um clube secreto, uma sociedade clandestina em que a poesia fosse a única lei e a sua partilha a grande liberdade. Mas não foi assim que aconteceu. O segredo passou de boca em boca e os sócios já ultrapassam a centena. Uma fantástica fuga de informação que nos fez repensar as coisas: fim ao secretismo. Multipliquemo-nos, sejamos muitos em redor do poeta que se juntar a nós. Passe a palavra.”, pode ler-se no site. As sessões realizadas durante o confi namento estão disponíveis no canal do Youtube do Teatro D. Maria II.
"SEM DIAS DE SOLIDÃO"
Há já quase dezanove anos que o Teatro do Campo Alegre, no Porto, vê a sua lotação esgotada, mensalmente: a culpa é das Quintas de Leitura. O ciclo literário acabou também por ser suspenso, tendo regressado dia 21 de maio, para uma sessão especial online, realizada através da página de Facebook do Teatro Municipal do Porto. A emissão “Sem dias de Solidão” foi especialmente dedicada ”à poesia, à liberdade, ao amor e ao futuro”, conforme esclareceu o TMP em comunicado de imprensa. Estes valores, que ganham especial relevância em momentos de medo e incerteza, foram celebrados sob a forma de poemas de Mário Cesariny, Manuel António Pina, Afonso Cruz, José Luís Peixoto, Pablo Neruda, Tristan Tzara e Rolf Jacobsen.
“CAMÕES DESCONFINOU PORTUGAL”
E porque é de poesia que falamos, não podíamos deixar passar em claro o brilhante discurso proferido dia 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, pelo Cardeal (e poeta) D. José Tolentino de Mendonça. Sem considerações adicionais, porque as suas palavras bastam, recordemos um excerto:
“Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à Índia, mas que nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar — e esse é o prodígio da grande literatura — àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto um ser humano sobre a terra não se pode isentar.
O cardeal José Tolentino Mendonça durante o discurso na cerimónia do 10 de Junho de 2020. © Presidência da República
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não se conformar com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes. E isso é tanto mais decisivo numa época que não apenas nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de umamudança de época.”