Três poemas de Tolentino Mendonça
Por: Bertrand Livreiros a 2021-12-15 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Nasceu a 15 de dezembro de 1965, na Madeira, e teve no mar a sua escola do espanto. A escrita começou como um estranhamento e é da Bíblia ("um grande poema”) que nasce o seu amor pela literatura, essa escola de sabedoria. Investido cardeal em finais de 2019, o "Bibliotecário de Deus e dos Homens”, como já foi apelidado, foi eleito pelo Papa Francisco para ser o guardião do mais vasto arquivo do saber, o grande arquivo do Vaticano. Vê na poesia um lugar de inevitabilidades e gosta de citar Beckett ("falhar, falhar mais, falhar melhor”), para sublinhar a importância da arte de falhar, de esculpir, tirar camadas, para cada vez mais chegar ao osso, ao essencial. José Tolentino Mendonça está hoje de parabéns.
"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"
o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem
os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois
"pago-te um café se me contares
o teu amor"
O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve
O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?
Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração