Três poemas de Cruzeiro Seixas
Por: Bertrand Livreiros a 2021-12-03 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Decano da arte portuguesa e um dos grandes nomes do Surrealismo português e europeu, Artur do Cruzeiro Seixas nasceu em 3 de dezembro de 1920. No seu longo percurso artístico, conta com uma fase expressionista, outra neorrealista e outra, com início no final dos anos 40, mais prolongada, em que integra o movimento Surrealista Português, ao lado de Mário Cesariny, Carlos Calvet, António Maria Lisboa, Pedro Oom ou Mário Henrique Leiria. Foi um dos seus precursores e atualmente é considerado um dos seus máximos expoentes. No dia em que celebraria 101 anos, recordamos a sua poesia.
O parto de uma pedra
é realmente um espectáculo
para uma vida inteira.
E há ainda o sol
e a sua vergonhosa incompatibilidade
com a lua.
Mas hoje estou triste como se fosse poeta
e é à sombra do vento que me acolho
puxando para os ombros
a nudez da paisagem.
Vêm os violinos
de muito longe
ouvir a neve.
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A tua boca adormeceu
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.
Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.
E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.
As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.
Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.
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Um cão
é isto de sermos gente.
Se temos só duas pernas
temos em contrapartida
uma complicação escura
dentro do peito.
Qualquer coisa como
os fundos desconhecidos
da água
só conhecidos
dos náufragos.
Para matar
é preciso uma arma
e para voar
como búzios
precisamos papel e lápis
— e assim viajamos
dentro de vegetais malas de viagens
procurando o destino sufocante
de todas as paragens.