Lídia Jorge: "A arte é o desejo absoluto de não aceitar a ditadura da realidade."
Por: Isabel Lucas a 2021-07-09 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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O romance é essencial à criação de uma subjetividade profunda, defende Lídia Jorge, que fala de uma deontologia de escrita de romance que passa por um pacto de honestidade entre o escritor e o seu pensamento. Numa altura em que se volta a pensar as questões essenciais, a autora de Os Memoráveis sublinha o papel da arte na História e assume-se, enquanto escritora, uma testemunha do seu tempo. É nesse papel que olha o mundo e o vai descobrindo um pouco mais a cada romance.
O escritor J. M. Coetzee disse qualquer coisa como esta: que o escritor escreve ficção e depois lhe vêm perguntar o que pensa sobre o mundo. Acha que se espera que o escritor seja capaz de dar uma explicação sobre o mundo?
Isso é muito interessante. Acho que as pessoas têm a consciência de que os escritores não são especialistas de coisa nenhuma e que por isso se aproximam bastante daquilo que é uma pessoa comum, que está aberta sem censura a todo o tipo de pensamento e de conhecimento e que tem da vida uma ciência selvagem, muito perto do que é a generalidade do pensamento à solta. Aí encontra-se, muitas vezes, um pensamento não formatado que sai do que está na altura a ser o habitual, fora das modas, muito independente. Acho que os escritores são essencialmente pessoas que recolhem as vozes dos outros e constroem a sua com a consciência da consciência dos outros, e acabamos por ter uma ideia sobre o mundo que, muitas vezes, é reveladora de uma nova visão. Acho que as pessoas procuram isso, procuram ver uma espécie de fonte de ingenuidade que os escritores mantêm sobre aquilo que está a acontecer e que é diferente do mundo sábio. É um outro conhecimento. Depois, é porque os escritores são pessoas com um entusiasmo profundo pela vida. Ultrapassam a fase da infância e ficam muitas vezes na parte da adolescência, uma altura da vida em que se tem a ideia de que se é capaz de abarcar o mundo todo. Há uma imagem muito interessante do Kundera que li uma vez e não sou capaz de saber em que livro — já procurei e não encontro —, mas que percebi que é uma imagem comum no mundo eslavo: a de que o poeta é uma criança cega que a mãe leva aos ombros para explicar o mundo. É a ideia de que os escritores se colocam ainda no colo da mãe, mas ao alto; estão ao alto e são cegos, não veem, mas têm a ideia de que podem explicar o mundo.
Recentemente, Don DeLillo, muitas vezes apontado como uma espécie de profeta por parecer que consegue antever na sua escrita algumas crises do mundo, não desmentia completamente essa capacidade que diz não ser só dele, mas de muitos escritores: a de que há uma atenção ao mundo, às vozes, que funcionam quase como uma antena que permite ler à frente.
Acho que muitos desses sentimentos são comuns a toda a gente; o que acontece é que os escritores fi cam atentos a isso e dão importância a isso, a essas imagens que às vezes aparecem nas nossas cabeças. Depois transformam isso em matéria verbal. Acho que a capacidade de perceber que há qualquer coisa que está para lá do tempo que estamos a viver nos caracteriza como seres humanos. Enquanto muita gente gasta uma grande energia com o desdém pela vida, acho que os escritores, mesmo quando falam com desdém, são pessoas com um instinto salvador.
Acha?
Acho. Acho que temos um instinto salvador. O que fazemos é um oximoro; fazemos um cruzamento e dizemos o contrário do que queremos dizer, com a ideia de que ao escrever alguma coisa com desdém ou pessimismo estamos a reclamar o seu oposto. Isso é muito visível. Se há uma ideia de que eu nego o mundo e falo mal dele, procuro seres aberrantes, aquilo de que estou, no entanto, à procura é de emendar aquilo que me rodeia.
Quer dar um exemplo?
Sim. Posso referir um livro, belíssimo, à volta dessa questão de os escritores conseguirem contrabalançar o mal com uma parte de beleza que o ampara. Por exemplo, em As Velas Ardem Até ao Fim, se fizer a análise do que acontece àqueles dois homens já velhos, a história de quando eles eram jovens é absolutamente pessimista; é uma história em que o amor não tem redenção, em que a amizade pode ser salvadora, mas ao mesmo tempo é traída. É um livro sobre a traição, a traição mais profunda. Chega-se ao fim e aquilo é contado de tal maneira que a gente percebe que o autor, Sandor Marai, quis foi escrever exatamente o oposto; foi reclamar a beleza do amor e a beleza da amizade, que o mundo, tal como a gente o vive e como a gente o conhece, não permite que seja completo. É dos livros mais belos que li nesse sentido, o sentido de uma reclamação profunda, de uma harmonia que o mundo não tem. E, no entanto, é eficaz porque descreve a desarmonia.
"Quando há uma desordem na existência a gente procura o fundamental; o sentido da vida torna-se absolutamente essencial."
Estamos a viver um tempo de urgência que se prolonga. No início da pandemia, pediu-se a muitos escritores que escrevessem textos sobre este momento, como se só eles fossem capazes de ter uma linguagem para o que se estava a passar, um espanto quase universal diante do que estava a acontecer. Surgiram diários, crónicas, contos em que se tentava ler e interpretar um momento.
Sim, e a associação que se faz entre isso e episódios, leituras. De repente recorre-se a toda uma memória do passado e a uma espécie de memória sobre um sonho de futuro que permite articular um argumentário interpretativo das análises dos especialistas. Foi extraordinário e continua a ser — agora já de uma outra maneira — o pedido que se fez aos escritores sobre a interpretação do que estava a ocorrer. Hoje sinto, apesar de tudo, que os jornais parecem estar mais pacificados; parece que estão à procura da saída, da solução. Mas sobre esse espanto de que fala, sim, é verdade. Sobretudo porque acho que os escritores estão habituados a saber que a ordem na existência provoca uma desordem na essência, e a desordem na existência provoca uma ordem. Quando há uma desordem na existência a gente procura o fundamental; o sentido da vida torna-se absolutamente essencial. Perante a desordem da existência a gente pergunta, todos muito mais em conjunto, para que é que existimos, qual é o sentido da humanidade. Quando a existência está em ordem nós preocupamo-nos mais com elementos que são aleatórios entre nós e ficamos com muito mais desordem interior; entregamo-nos aos vícios do pensamento muito menos essencial, mais acidental. Aquilo que se perguntou nesse momento foi: qual é o sentido da História? Porque é que se repete isto? Qual é o significado? Será que a Humanidade tem um limite de seres sobre a Terra? Será que a Terra precisa de sacudir de vez em quando uns quantos? Será que aquilo a que estamos a assistir é uma nova capacidade de organização de todas as nações e esta é uma nova era? Será que há uma nova resposta da Humanidade à História e estamos perante um momento em que pretendemos, mesmo perante a desordem, criar uma ordem com os recursos científicos que temos à nossa mão? Conseguiremos?
Não são, mais ou menos, as perguntas de sempre?
São as perguntas fundamentais — aquelas que Adorno e Walter Benjamin fizeram na primeira metade do século XX. São perguntas feitas por qualquer pessoa: qual é o sentido disto? Porquê isto? E sobretudo neste momento. Esta pandemia, como foi vivida em simultâneo, foi a primeira vez que tivemos a noção global de que tudo o que nos estava a acontecer estava a acontecer no mundo. E ao mesmo tempo soubemos também como ultrapassar, todos em conjunto. Pela primeira vez estes pensamentos foram em simultâneo, foram globais. E pela primeira vez houve uma espécie de comunhão global em simultâneo. Todas as pessoas quiseram saber porquê, porquê isto. À procura de uma resposta. É um momento de profundo abalo e também de profundo entendimento porque estamos solitários. Acho que há três elementos que coincidem nesta altura. Veja a forma como o ano de 2020 é escrito. No início desse ano escrevi e-mails e pequenos postais a alguns amigos, dizendo este era o ano do carro, porque me parecia uma viatura, os zeros pareciam rodas e achei que seria um ano de progresso, de alegria: foi de facto o ano do carro, mas de revelação. Por um lado, tinha havido as grandes manifestações pelo planeta; as crianças de todo o mundo alertavam para a necessidade de se salvar o planeta porque não havia Planeta B. Esse ato é muito bom, mas contém também uma mensagem de solidão, que é a consciência de que estão sozinhas no espaço. Por outro lado, foi o ano em que a pandemia surgia, mas o [Elon] Musk criou a ilusão de que em breve iríamos para Marte. Durante a pandemia cria-se a ideia de que a expansão no espaço é possível. A noção que os jovens têm é a de que têm de combater uma grande incerteza e uma grande solidão. Penso haver uma grande semelhança com o que acontece no século XVII, que deu a época do Barroco, quando as pessoas ficaram com uma grande angústia porque descobriram os espaços infinitos. Nós agora percebemos que a terra é finita, pode ficar sozinha sem nós, a Humanidade pode desaparecer da terra e, ao mesmo tempo, o espaço está ainda muito longínquo. O ano do carro pôs-nos perante todos estes dilemas. Tenho a ideia de que estamos a marcar um novo momento, como muita gente está a sentir; de que há um novo momento. Ainda que o [Gilberto] Gil tenha dito que todos os dias se inaugura uma nova era, há dias que inauguram mais eras do que outros. Do ponto de vista do pensamento e das ideias estamos perante uma outra coisa.
Enquanto escritora, este tempo foi estimulante ou foi um momento de parar e tentar perceber o que se estava a passar? Como reagiu do ponto de vista criativo?
Foi um momento de reação. Por um lado, escrevi textos a pedido, muitos — escrevi treze —, pedidos por jornais, por pessoas que fizeram coletâneas. E, por outro lado, houve um livro que eu estava a escrever que tive de suspender porque tive a deia de que estava a escrever sobre um tempo que aquele tempo que eu estava a viver suspendeu. Pu-lo de lado porque percebi que estava uma coisa nova a bater à porta. Comecei a escrever um livro que tem a ver com uma experiência pessoal muito forte que ocorreu durante este tempo. Ainda que eu não vá escrever diretamente sobre este tempo, só é possível escrevê-lo porque o vivi.
É esse livro que parte da palavra “misericórdia”?
É o livro que tem o título Misericórdia, sim.
O que é que há nessa palavra?
É o pedido de que se esclareça alguma coisa sobre a nossa finitude, sobre aquilo que em nós precisa de compaixão. Aliás, quem me levou a escrever este livro e me pediu disse-me que gostaria de que eu escrevesse um livro que se chamasse Misericórdia, no qual eu pudesse mostrar compaixão pela vida das pessoas, sobretudo pela forma como termina a vida.
"Culpa é uma palavra de uma grande nobreza."
Misericórdia e compaixão são palavras com muitas cargas e algum preconceito.
Sim, senti isso muito porque foram palavras que sempre tive. E houve também outra palavra: culpa. Acho que a culpa é uma palavra de uma grande nobreza; a pessoa sentir-se culpada significa ter a consciência do erro, da falta que deve aos outros. Os psicanalistas odeiam a palavra culpa porque dizem que faz as pessoas infelizes, que não se devem sentir culpadas. Eu acho o contrário. É evidente que existe a culpa patológica, mas a culpa é o que faz de nós seres humanos. A culpa significa que há uma solidariedade profunda entre os seres humanos; é um sentimento que nos inscreve acima da biologia e é fundamental para vivermos e nos guiarmos neste mundo. É aquilo que acontece, como estamos a ver hoje, com ditadores infernais. Até há pouco tempo havia ditadores que se mascaravam mais ou menos. Neste momento olha-se para ditadores que estão matando pessoas, violando abertamente direitos de uma forma terrível. A sensação que tenho é que são pessoas destituídas do sentimento de culpa e de culpabilidade.
É uma culpa fora do pensamento judaico-cristão?
Sim. Recuo muito mais. Se for até ao Livro dos Mortos, dos egípcios, encontra essa noção. A noção de culpa é alguma coisa de inerente à humanidade. Claro que o sentimento judaico-cristão de Abel e Caim se tornou muito forte no mundo ocidental, mas a culpa é anterior a isso. Veja a Ilíada e a Odisseia. São livros cheios desse sentimento, dessa ideia de que há um outro dentro de mim, de que há um outro dentro de um eu, que a humanidade se fez assim. A humanidade faz-se quando vem uma tempestade e se percebe que o raio vai cair numa árvore onde está uma pessoa sentada e alguém corre pela planície e retira a pessoa de debaixo da árvore, arriscando a vida. É um sentimento de respeito pelo outro que quando não acontece nos deixa culpa, nos deixa a ideia de que faltámos ao outro.
E quer falar do Misericórdia?
Não quero falar muito do Misericórdia porque estou mesmo dentro do livro, completamente, e não gosto muito de antecipar. Quando a pessoa está a escrever tem a ideia de que está a escrever uma coisa muito, muito importante, e às vezes ela só é importante para si mesma e mais ninguém e ficamos vistos como uns fanfarrões.
A versão integral desta entrevista exclusiva a Lídia Jorge pode ser lida na edição de verão da revista Somos Livros.