1922: depois da guerra e da pandemia, o milagre da literatura

Por: Beatriz Sertório a 2022-03-17 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa

Últimos artigos publicados

Livros e cidadania

“Parece impossível escrever sobre o protagonismo do mundo do livro no século XXI, sobre as livrarias independentes e as bibliotecas mais desafiantes ou inovadoras, sobre as constelações de leitores que, como eu, continuam a acreditar no papel sem pensar na Amazon como antagonista.” Ao longo dos últimos anos, o autor espanhol Jorge Carrión visitou bibliotecas (reais e imaginárias) e livrarias em todo o mundo, com o intuito de deixar firmado o valor do livro e da sua proximidade como pilares da nossa educação sentimental e intelectual. Depois de Livrarias, publicado pela Quetzal em 2017, regressa agora com um livro-manifesto a que chamou Contra a Amazon.

Música e literatura

“As mãos pousam ao piano. Na brancura do teclado, os dedos se deixam deslizar, potentes cavalos-marinhos de volta à água aonde pertencem. Lançada de cima, a luz do palco o divisa da escuridão, abre cortinas por entre as cortinas.” Assim começa a história de Rômulo Castelo, um pianista virtuoso, inteiramente dedicado à busca da perfeição na sua arte. Todas as manhãs, ao acordar, fecha-se na sua sala de estudos e ensaia aquela que é considerada a peça intocável de Franz Liszt, o Rondeau Fantastique. Em breve, Rômulo irá oferecê-la ao mundo, numa tournée pela Europa que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor. 

Pai é…

Pai é táxi, é quem nos leva às cavalitas e nos guia pelas ruas da vida. Segue todas as direções que lhe indicamos com um sorriso no rosto e nunca nos deixa ficar parados em engarrafamentos. Sabe todos os caminhos e tem a melhor banda sonora.

Não é difícil estabelecer paralelismos entre o mundo em 1922 e aquele em que vivemos hoje, precisamente um século depois. Na primeira metade do século XX, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Gripe Espanhola (1918-1920), colheram, em conjunto, mais de 70 milhões de vidas, um pouco por todo o mundo. Por sua vez, a primeira metade do século XXI conheceu uma nova pandemia, e confronta-se agora com a possível iminência de um novo conflito mundial, com a invasão militar da Ucrânia pela Rússia. 



Sobre a profunda crise, económica e de valores, que se seguiu aos acontecimentos que marcaram o início do século XX, escreveram-se inúmeros livros cujos títulos são um verdadeiro reflexo do clima social e político que se vivia na altura. Entre eles, A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler (1923-1928), A Crise da Nossa Civilização, de Hilaire Belloc (1937), ou até mesmo Uma Nova Idade Média, de Nikolai Berdyaev (1931). Já sobre o século XXI, à luz da pandemia que parou o mundo em 2020, escreveu Gonçalo M. Tavares que este era “um século partido em dois por um vírus” (Diário da Peste, 2020); e agora, poderíamos acrescentar, partido, mais uma vez, pela guerra. 

Num ensaio com um título igualmente revelador (A Crise do Espírito, 1919), escreveu o poeta Paul Valéry: “Nous autres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles” (“as civilizações sabem agora que são mortais”). E após essa revelação, o mundo e, consequentemente, a arte e a literatura, nunca mais poderiam ser os mesmos.  Depois da morte provocada pela guerra e pela pandemia, veio então a sede de viver, a que se chamou os “loucos anos 20”, e a disrupção, com a origem de um novo movimento artístico e literário conhecido como modernismo – este, caracterizado pela rejeição de todas as convenções e pela forma não linear de retratar a realidade. Por ser o ano de publicação de algumas das mais importantes obras literárias deste movimento, 1922 ficou então para a História como o “annus mirabilis” (ano maravilhoso ou miraculoso) da literatura - aquele a partir do qual tudo mudou.

Numa altura em que temos ainda bem fresco nas nossas memórias a forma como a literatura e as artes foram um verdadeiro antídoto contra o isolamento, durante os múltiplos confinamentos impostos pela pandemia; e em que assistimos, na Ucrânia, a imagens como a que aqui reproduzimos, numa metáfora dolorosamente crua de como os livros salvam, podemos apenas imaginar de que forma estes eventos irão determinar o curso da literatura nos próximos anos. Olhemos então para o passado como possível forma de descortinar o futuro, e recordemos o momento em que a literatura, confrontada com a dureza da realidade, deixou de poder ser uma  mera atividade de ócio, para passar a ser “um tiro de pistola entre a multidão” (André Breton), uma verdadeira “bofetada no gosto público” (citação de Vladimir Maiakovski que Almada Negreiros adota para caracterizar o projeto literário da Geração d’Orpheu), ou, como o descreveu Franz Kafka, autor de algumas das obras mais importantes desta época, “um machado que quebra o mar gelado em nós.”


Calendário literário de 1922

Janeiro

  • A dois anos de morrer, vítima de tuberculose, o autor checo Franz Kafka começa a escrever O Castelo, um dos seus romances mais enigmáticos, e que nunca chegou a terminar. 
     
  • Na mesma altura, no Japão, Ryunosuke Akutagawa's publica o conto que iria inspirar o clássico de cinema Rashomon, de Akira Kurosawa, e que relata, de forma inovadora, a história de um homicídio a partir de múltiplas perspetivas diferentes. 

Fevereiro

  • É publicada, pela livraria Shakespeare and Company, em Paris, a primeira edição de Ulisses, de James Joyce – uma das mais importantes, e revolucionárias obras do modernismo.
     
  • No mesmo mês, o poeta Rainer Maria Rilke escreve os seus Sonetos a Orfeu e termina as Elegias de Duíno – duas obras que têm como inspiração o sofrimento causado pela guerra. 
     
  • É também por esta altura que T.E. Lawrence termina finalmente o seu romance autobiográfico, Os Sete Pilares da Sabedoria, depois de ter perdido o manuscrito inicial num comboio.

 

 

Março

  • F. Scott Fitzgerald publica, em Nova Iorque, o seu romance Belos e Malditos, uma história de amor em tempos de guerra.

Abril

Maio

  • No dia 18 de maio, Marcel Proust, James Joyce, Igor Stravinsky, Pablo Picasso e outras figuras proeminentes do panorama cultural da época juntam-se para um jantar no Hotel Majestic, em Paris.

Junho

  • A revista norte-americana Collier’s publica The Diamond as Big as the Ritz, um conto de F. Scott Fitzgerald adaptado para a rádio por Orson Welles, em 1945.

Julho

  • Após a publicação de uma segunda edição de Canções de António Botto, Fernando Pessoa redige um artigo no qual elogia o poeta por ter escrito “o único exemplo em Portugal da realização literária, de qualquer espécie, do ideal estético”.

Outubro

  • T. S. Eliot funda a influente revista The Criterion, na qual publica o seu mítico poema A Terra Devastada, um verdadeiro símbolo da literatura do pós-guerra.
     
  • Virginia Woolf escreve a história que irá servir de inspiração para Mrs. Dalloway, frequentemente considerado como um dos cem melhores romances em língua inglesa do século XX.

Novembro

  • Depois de terminar de escrever Em busca do tempo Perdido, doente na sua cama, Proust morre a 18 de novembro, vítima de pneumonia;
     
  • Dois dias antes da morte de Proust, havia nascido, na aldeia de Azinhaga do Ribatejo, José Saramago, tendo os dois autores sido contemporâneos por meras 48 horas. O seu centenário, comemorado numa altura em que o mundo se encontra novamente mergulhado em caos e incerteza, guarda em si a esperança do advento de um novo milagre; e assim, mais uma vez, da salvação através da literatura.
     
X
O QUE É O CHECKOUT EXPRESSO?


O ‘Checkout Expresso’ utiliza os seus dados habituais (morada e/ou forma de envio, meio de pagamento e dados de faturação) para que a sua compra seja muito mais rápida. Assim, não tem de os indicar de cada vez que fizer uma compra. Em qualquer altura, pode atualizar estes dados na sua ‘Área de Cliente’.

Para que lhe sobre mais tempo para as suas leituras.