1922: depois da guerra e da pandemia, o milagre da literatura
Por: Beatriz Sertório a 2022-03-17 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Não é difícil estabelecer paralelismos entre o mundo em 1922 e aquele em que vivemos hoje, precisamente um século depois. Na primeira metade do século XX, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Gripe Espanhola (1918-1920), colheram, em conjunto, mais de 70 milhões de vidas, um pouco por todo o mundo. Por sua vez, a primeira metade do século XXI conheceu uma nova pandemia, e confronta-se agora com a possível iminência de um novo conflito mundial, com a invasão militar da Ucrânia pela Rússia.
Sobre a profunda crise, económica e de valores, que se seguiu aos acontecimentos que marcaram o início do século XX, escreveram-se inúmeros livros cujos títulos são um verdadeiro reflexo do clima social e político que se vivia na altura. Entre eles, A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler (1923-1928), A Crise da Nossa Civilização, de Hilaire Belloc (1937), ou até mesmo Uma Nova Idade Média, de Nikolai Berdyaev (1931). Já sobre o século XXI, à luz da pandemia que parou o mundo em 2020, escreveu Gonçalo M. Tavares que este era “um século partido em dois por um vírus” (Diário da Peste, 2020); e agora, poderíamos acrescentar, partido, mais uma vez, pela guerra.
Num ensaio com um título igualmente revelador (A Crise do Espírito, 1919), escreveu o poeta Paul Valéry: “Nous autres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles” (“as civilizações sabem agora que são mortais”). E após essa revelação, o mundo e, consequentemente, a arte e a literatura, nunca mais poderiam ser os mesmos. Depois da morte provocada pela guerra e pela pandemia, veio então a sede de viver, a que se chamou os “loucos anos 20”, e a disrupção, com a origem de um novo movimento artístico e literário conhecido como modernismo – este, caracterizado pela rejeição de todas as convenções e pela forma não linear de retratar a realidade. Por ser o ano de publicação de algumas das mais importantes obras literárias deste movimento, 1922 ficou então para a História como o “annus mirabilis” (ano maravilhoso ou miraculoso) da literatura - aquele a partir do qual tudo mudou.
Numa altura em que temos ainda bem fresco nas nossas memórias a forma como a literatura e as artes foram um verdadeiro antídoto contra o isolamento, durante os múltiplos confinamentos impostos pela pandemia; e em que assistimos, na Ucrânia, a imagens como a que aqui reproduzimos, numa metáfora dolorosamente crua de como os livros salvam, podemos apenas imaginar de que forma estes eventos irão determinar o curso da literatura nos próximos anos. Olhemos então para o passado como possível forma de descortinar o futuro, e recordemos o momento em que a literatura, confrontada com a dureza da realidade, deixou de poder ser uma mera atividade de ócio, para passar a ser “um tiro de pistola entre a multidão” (André Breton), uma verdadeira “bofetada no gosto público” (citação de Vladimir Maiakovski que Almada Negreiros adota para caracterizar o projeto literário da Geração d’Orpheu), ou, como o descreveu Franz Kafka, autor de algumas das obras mais importantes desta época, “um machado que quebra o mar gelado em nós.”
Calendário literário de 1922
Janeiro
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A dois anos de morrer, vítima de tuberculose, o autor checo Franz Kafka começa a escrever O Castelo, um dos seus romances mais enigmáticos, e que nunca chegou a terminar.
- Na mesma altura, no Japão, Ryunosuke Akutagawa's publica o conto que iria inspirar o clássico de cinema Rashomon, de Akira Kurosawa, e que relata, de forma inovadora, a história de um homicídio a partir de múltiplas perspetivas diferentes.
Fevereiro
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É publicada, pela livraria Shakespeare and Company, em Paris, a primeira edição de Ulisses, de James Joyce – uma das mais importantes, e revolucionárias obras do modernismo.
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No mesmo mês, o poeta Rainer Maria Rilke escreve os seus Sonetos a Orfeu e termina as Elegias de Duíno – duas obras que têm como inspiração o sofrimento causado pela guerra.
- É também por esta altura que T.E. Lawrence termina finalmente o seu romance autobiográfico, Os Sete Pilares da Sabedoria, depois de ter perdido o manuscrito inicial num comboio.
Março
- F. Scott Fitzgerald publica, em Nova Iorque, o seu romance Belos e Malditos, uma história de amor em tempos de guerra.
Abril
- A editora francesa Gallimard publica Sodoma e Gomorra II, o quarto dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, obra-prima de Marcel Proust.
Maio
- No dia 18 de maio, Marcel Proust, James Joyce, Igor Stravinsky, Pablo Picasso e outras figuras proeminentes do panorama cultural da época juntam-se para um jantar no Hotel Majestic, em Paris.
Junho
- A revista norte-americana Collier’s publica The Diamond as Big as the Ritz, um conto de F. Scott Fitzgerald adaptado para a rádio por Orson Welles, em 1945.
Julho
- Após a publicação de uma segunda edição de Canções de António Botto, Fernando Pessoa redige um artigo no qual elogia o poeta por ter escrito “o único exemplo em Portugal da realização literária, de qualquer espécie, do ideal estético”.
Outubro
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T. S. Eliot funda a influente revista The Criterion, na qual publica o seu mítico poema A Terra Devastada, um verdadeiro símbolo da literatura do pós-guerra.
- Virginia Woolf escreve a história que irá servir de inspiração para Mrs. Dalloway, frequentemente considerado como um dos cem melhores romances em língua inglesa do século XX.
Novembro
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Depois de terminar de escrever Em busca do tempo Perdido, doente na sua cama, Proust morre a 18 de novembro, vítima de pneumonia;
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Dois dias antes da morte de Proust, havia nascido, na aldeia de Azinhaga do Ribatejo, José Saramago, tendo os dois autores sido contemporâneos por meras 48 horas. O seu centenário, comemorado numa altura em que o mundo se encontra novamente mergulhado em caos e incerteza, guarda em si a esperança do advento de um novo milagre; e assim, mais uma vez, da salvação através da literatura.