"Deve ler-se com precaução"
Por: Marisa Sousa a 2022-09-15 // Coordenação Editorial: Marisa Sousa
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Em 11 de abril de 1933, respeitando o espírito da Constituição recentemente aprovada, que determinava como função do Estado a defesa da opinião pública “de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum”, é publicado o Decreto-Lei n.º 22 469, que estabelece que continuam “sujeitas a censura prévia as publicações definidas na lei de imprensa e bem assim as folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social”. A Imprensa continua, desta forma, sob o regime de censura a que estava sujeita desde 1926. No que diz respeito às obras, geralmente apreendidas após comercialização, enfrentaram diversos métodos de censura: fiscalização e apreensão prévia nas tipografias, índices de publicações proibidas, fiscalização de livrarias após denúncias ou na sequência das tarefas que incumbiam à polícia política.
Em 29 de junho, é criada a Direção-Geral dos Serviços de Censura, na inteira dependência do Ministério do Interior (Decreto-Lei n.º 22756). Assiste-se ao aparecimento da imprensa clandestina — como o jornal A Verdade —, que visa divulgar o que é censurado pela máquina censória.
Ainda em 1933, um relatório elaborado pela Direção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa, a pedido de Salazar, dava conta do desconforto sentido face à ineficácia do controlo dos livros pelos serviços da censura, nomeadamente por falta de pessoal. Este relatório propunha que os livreiros entregassem listas das publicações recebidas de “carácter político ou social e das que afetem a moral pública”. Dessas listas, selecionar-se-iam as obras “mais suspeitas” que, posteriormente, seriam ou não visadas pela Comissão de Censura. As restantes publicações teriam autorização para circular. A Direção-Geral de Censura manteria um índice das publicações proibidas que funcionaria como instrumento para a fiscalização dos postos de venda pelas autoridades policiais. O mesmo documento enumerava os princípios a que deveria obedecer a censura.
A política e a legislação subsequentes deram continuidade ao reforço do controlo dos livros, através dos serviços de censura, da fiscalização no terreno pela polícia política, mas também através da responsabilização dos intervenientes nos processos de edição e de comercialização dos livros. Os próprios editores podiam solicitar a análise prévia das obras.
A censura, “um mal necessário”
Numa intervenção proferida em 1951, o deputado Castilho de Noronha defendia a revisão da legislação relativa à censura prévia e a necessidade de criar “uma lei que regule, em termos claros e insofismáveis, o exercício da censura”, de forma a minorar a sua dependência dos critérios arbitrários dos censores. Para apoiar a sua ideia, o orador recorreu a uma citação de Salazar: “A censura é já de si odiosa. A censura irrita. Disse-o uma vez o Sr. Dr. Oliveira Salazar ao jornalista que o entrevistava, (...) porque (...) não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento, a expressão do seu pensamento. (...)” “Temos, pois, que a censura é um mal. Mas, pelo que S. Ex.ª [Salazar], em justificação do estabelecimento da censura, disse logo a seguir às palavras que acabei de citar, é um mal necessário.”
Foram muitos, e conhecidos, os nomes visados pela censura. Felizmente, muitas dessas obras estão hoje disponíveis para que, fazendo uso da liberdade conquistada, as possamos ler e avaliar sem as balizas do pensamento condicionado. Recordamos algumas delas.
Manhã submersa, de Vergílio Ferreira. Inicialmente publicada sob o título Cavalo degolado, foi proi- bida pela censura em 1953. Em carta datada de 31 de maio de 1953, Vergílio Ferreira responde à Direção dos Serviços de Censura (DSC): “Foi para mim uma amarga surpresa a eliminação radical do meu livro Cavalo degolado. A amargura deriva da impossibilidade em que me vejo de lutar pela realização de mim próprio como artista. (…) Já que as circunstâncias a tal me obrigam, ouso reafirmar a V. Exª, com a consciência serena, que o romance eliminado não é um livro banal; que se a arte, como fundamental valor de cultura, tem entre nós a defesa que merece, é inteiramente justo que o meu livro seja revisto com uma tolerância que se lhe negou.”
Uma coleção de 14 contos, protagonizados por humanos e animais que partilham características e enfrentam os mesmos problemas do dia a dia, com um carácter profundamente humano, num tom dramático e, por vezes, até desesperado, Bichos, de Miguel Torga, foi publicado pela primeira vez em 1940, tendo sido censurado pelo Estado Novo em 1953. Miguel Torga, autor oriundo de Trás-os-Montes, era apelidado de “escritor comunista”, ainda que tivesse tentado provar o contrário, ao enviar diretamente a Salazar um dos seus livros para que este pudesse analisar a sua escrita. Todavia, para além de Bichos, o escritor viu mais 12 livros seus — entre eles os Diários, A criação do Mundo ou Contos da montanha — proibidos pela censura portuguesa.
A Comissão de Censura proibiu, em 1955, a representação da peça Pátria, de Guerra Junqueiro, uma obra que traça um retrato do Portugal de então: “(...) Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de miséria, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta; (...) Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; (…) A Justiça ao arbítrio da Política, tor- cendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas; (…) Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar; (…) Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio; (...) O português , apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer condição. (...)”
Em 1957, o deputado Marques Teixeira apelava “à intensificação da ação policial” no controlo dos livros infantis e juvenis, lamentando “a nocividade de certas histórias chamadas de quadradinhos”, “a obscenidade das imagens de alguns livros” e a “febre das novelas policiais”, veículos para a delinquência e a difusão das “toxinas do comunismo internacional”. Na mesma intervenção, o deputado defendia a edição abundante de “livros bons” que “recreiam, instruam e eduquem” como forma de combater os “livros condenáveis” e elegia como temas nobres para os jovens as viagens, as biografias e a História.
Casa sem pão (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE. De acordo com a investigadora Ana Bárbara Pedrosa: “No caso de Maria Archer, parece-nos que a ação da censura teve um peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo de viver mais de duas décadas fora de Portugal. Além disso, enformou-lhe a criação, já que teve de alterar a sua obra de forma que esta pudesse passar ilesa pela mão dos agentes censórios. Tem havido algumas tentativas de recuperação da sua obra — e, consequentemente, do seu lugar na história literária —, mas estas têm sido insuficientes para que seja conhecida pelo grande público.”
Em 1959, o escritor Aquilino Ribeiro, então com 74 anos de idade, foi levado a Tribunal Plenário, indiciado por delito de opinião relativo ao conteúdo do romance Quando os lobos uivam. No relatório de censura, manuscrito, pode ler-se: “1.º Não autorizada a reedição. 2.º Não permitir críticas em impressão. 3.º Apreender os poucos exemplares que, possivelmente...”
O Delator (1962), de Maria Teresa Horta, que narra a história de um grupo de jovens revolucionários que planeia um ataque a um regime autoritário, foi proibido em 1964, com o seguinte comentário do censor: “É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.”
Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, publicado em 1941, foi proibido em 1966, vinte e cinco anos após a sua publicação. No relatório de censura pode ler-se: “Julgo por isso que este livro deveria ter sido proibido quando apareceu, mas agora, só servia à sua propaganda no nosso meio, que o poderia ignorar. ”
A escritora portuguesa com mais obras censuradas pela PIDE foi Natália Correia. Em 1962, numa nota informativa, a PIDE dava conta que: “Desde há muito que se encontra referenciada como elemento adversário das Instituições.” A edição da Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica (1966) foi apreendida e julgada em Tribunal Plenário da Boa Hora, como “ofensivo do pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes”. Foram condenados Fernando Ribeiro de Mello, editor, e Natália Correia, escritora e organizadora da Antologia, a 90 dias de prisão correcional; Luiz Pacheco, escritor, Mário de Cesariny de Vasconcelos, escritor, José Carlos Ary dos Santos, escritor, e Ernesto Geraldes de Melo e Castro, escritor, todos a 45 dias de prisão, substituídos por multa.
Com a subida de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, criaram-se expectativas de mudança. Em 1971, o debate da lei de imprensa na Assembleia Nacional levou um grupo de intelectuais portugueses, entre os quais se incluíam os escritores Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, José Saramago, Maria Lamas, Mário Ventura, Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen, a denunciar a “repressão de todas as expressões do pensamento” e a exigir uma “efetiva liberdade de informação e expressão”. O fim da instituição da censura ocorre após a Revolução de 25 de abril de 1974, nomeadamente com a apro- vação da Constituição de 1976, que consagra no artigo 37.º a liberdade de expressão e informação e no artigo 42.º a liberdade de criação cultural.
De entre os milhares de riscos feitos pelo “lápis azul”, ficará também para a História aquele que teve como alvo um anúncio de casamento, publicado no Diário de Notícias, em setembro de 1971: “CASAMENTO. Cavalheiro de cor, moçambicano, 44 anos de idade e honesto, boa cultura geral, situação profissional e económica estável, deseja conhecer senhora ou menina de 28/35 anos para fins matrimoniais, de preferência nascida entre 21 de maio e 21 de junho, muito honesta e boa formação moral, (sociopolítico ultramarina), de cultura média ou ilustrada, de preferência vegetariana. Agradece foto recente que será devolvida não interessando. Assunto muito sério. Resposta ao rossio, 11, n.º 5187." Nem a expectativa do amor escapava à máquina censória, que considerou não ser aceitável incluir as expressões “sociopolítica ultramarina”.
Leia a versão integral da Revista Somos Livros Edição Comemorativa aqui (página 114).
Fontes: Arquivo RTP; Parlamento.pt; Exposição Censura dos livros impressos nos séculos XV a XIX, Biblioteca Nacional de Portugal (março a abril 2022); Esquerda.net; Diário de Notícias.